Marília Murta de Almeida
Nasci bem no centro de uma metrópole, mas nela nunca me reconheci. Minha ligação ao mundo está distante, lá onde minha mãe nasceu. Onde passam dois rios que se encontram. Onde brinquei e vivi nas férias – banho de rio, tardes na mata com os cavalos, leite no curral de manhã bem cedo. Onde mais tarde fui adolescente e inconsequente. Onde não senti medo e sonhei.
O cheiro do curral e dos cavalos, as cores das tardes, o farfalhar do vento nas árvores, a sensação do chão de terra sob os pés, nada disso sai da minha memória, como se ainda fosse hoje o dia em que vivi cada uma dessas sensações. Mais intensa do que as outras, a memória do rio. Ou dos rios. Dois rios que se encontram, um desaguando no outro. Eu vivi ora num, ora noutro, ora no ponto mesmo do encontro, de acordo com os passeios que fazíamos. Na infância, a prainha de brincadeiras e movimento. Na adolescência, a praia maior, o silêncio, o olhar perdido nas águas.
E nos rios havia a travessia. Lá onde os dois rios se encontravam era numa balsa que os barqueiros levavam a remo pessoas e carros à margem do outro lado. Em outro ponto, bem em frente à casa em que ficávamos, outro barqueiro nos atravessava em canoas. Pessoas e bagagem. Meu coração parecia sempre em suspenso na travessia. O rio ficava mais bonito. Os barqueiros, mestres no que faziam, davam à cena uma beleza a mais: eu confiava.
Ao mesmo tempo, na metrópole onde passava a maior parte do meu tempo, o que eu mais fazia era ler. Na adolescência, o alemão Hermann Hesse me acompanhou por muito tempo. No livro Sidarta encontrei a imagem do rio e do barqueiro, que tanto me povoava as férias. O peregrino Sidarta encontra seu lugar de parada à beira de um rio, junto ao barqueiro que passa a lhe ensinar o ofício da travessia e a arte de escutar o rio.
Há alguns dias atrás voltei aos rios da minha infância. Vi o encontro dos rios. Atravessei um deles num barquinho guiado por um barqueiro que conheci menino. Senti tudo igual. O silêncio e a voz do rio, a areia sob o pé, a água na pele toda e, na travessia, a confiança. O barqueiro, visto de longe quando voltava à outra margem para buscar os outros que esperavam, parecia andar sobre as águas. Não andava, o pequeno barco era o chão que ele conduzia com perfeição ao ponto exato que queria alcançar na outra margem.
Eu contemplava e me lembrei de Sidarta. Levado pelas palavras do barqueiro velho que agora era seu mestre, Sidarta aprendia a escutar o rio. Segundo o mestre, o rio sabia de tudo e poderia tudo ensinar. Sidarta pouco a pouco aprende. Escuta e aprende. Um dia perguntou ao mestre:
– Diz-me se o rio também te comunicou o misterioso fato de que o tempo não existe? – perguntou-lhe Sidarta certa feita.
O rosto de Vasudeva iluminou-se num vasto sorriso.
– Sim, Sidarta – respondeu. – Acho que te referes ao fato de que o rio se encontra ao mesmo tempo em toda a parte, na fonte tanto como na foz, nas cataratas e na balsa, nos estreitos, no mar e na serra, em toda a parte, ao mesmo tempo; de que para ele há apenas o presente, mas nenhuma sombra de passado nem de futuro. Não é isso que queres dizer?
Ouvindo isso, Sidarta compara a imagem do rio com sua própria vida. E pensa no passado, nas tantas coisas já vividas, no que agora vive à beira do rio, no futuro ainda não conhecido e pensa que o correr da vida é como o leito do rio que já está em todos os lugares ao mesmo tempo. Essa imagem dá a ele a compreensão de que o tempo não existe.
Essa ideia povoa minha imaginação desde há muito tempo. Como conciliá-la com toda a problematização ocidental sobre o tempo? Somos, afinal, o ser que vive no tempo, o ser da história aberta ao irromper do novo que só é possível porque nossa existência se dá no tempo, que é abertura ao futuro que ainda não se realizou. Santo Agostinho nos ensinou que o passado e o futuro não existem, a não ser como memória e expectativa. O passado já não está aqui, o futuro ainda não está. O que temos é o instante presente que, num processo de divisão infinita acabamos por entender que também não existe, pois é sempre possível identificar o imediatamente passado e o imediatamente futuro. O que existe é a consciência humana que constrói o tempo.
Seja pela consciência da inefabilidade do único tempo existente – o instante fugidio que não alcançamos –, seja pela consciência de que nossa existência já está toda ela colocada, tal como o leito do rio que está ao mesmo tempo na nascente e na foz, a conclusão dos dois autores surpreende na mesma fórmula: o tempo não existe. O que há é a consciência que se reconhece e se renova em sua existência.
Quando reconheço em mim exatamente as mesmas sensações que experimentei há décadas passadas, quando ainda muito pouco sabia de mim e do mundo, a percepção do Sidarta de Hesse em seu rio preenche toda a minha imaginação. Quando, ao contrário, me surpreendo com a novidade trazida por algum movimento novo, seja no mundo ou na interioridade, percebo a historicidade e a liberdade daquilo que está permanentemente aberto ao futuro por fazer.
O leito do rio está em toda parte, mas sua água é sempre nova, renovada pelo correr incessante possibilitado pela nascente e pelo desaguar no mar ou em outro rio. Na nascente, a água nova. Na foz, a surpresa da mistura.
No ponto de encontro dos dois rios da minha infância, as águas não se misturam logo. Vão correndo separadas, de modo que podemos ver, no leito novo que carrega os dois rios, as águas de tons diferentes. Mas pouco a pouco vai se dando a mistura e as águas do rio em que eu nadava na prainha já eram uma só, do mesmo novo tom que proveio da mistura. O leito dos rios está todo preenchido, da nascente à foz, mas sua água é sempre nova. Por isso me reconheço na confiança no barqueiro, desde sempre em minha vida que é então perenemente a mesma, mas ao mesmo tempo me surpreendo com o movimento da liberdade que me faz agora escrever sobre o barqueiro que conheci menino.
Marília Murta de Almeida é professora e pesquisadora no departamento de Filosofia da FAJE