O conflito de ideologias e o discernimento cristão da história: cinco critérios fundamentais

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Pe. Jaldemir Vitório SJ

Muitos cristãos, cristãs e pessoas de boa-vontade se veem afetados ou envolvidos em conflitos ideológico-políticos que insistem em polarizar a sociedade, a religião e as igrejas, cindindo-as em tendências antagônicas. Causa tristeza ver gente que se considera cristã, sem qualquer escrúpulo, difamar o próximo e promover o ódio e a violência, colocando em risco o convívio social e, em situações extremas, o Estado de Direito, em nome de bandeiras aleatórias, empunhadas sem qualquer senso crítico. Pior ainda, deixar de lado o discernimento cristão, cuja referência é Jesus de Nazaré e seu testemunho do Reino de Deus, tão bem narrados nas catequeses evangélicas.

Suspeito estarmos pagando o preço da carência de iniciação cristã, como exigência do Sacramento do Batismo, que sela o discipulado cristão e, nos passos do Mestre de Nazaré, faz dos batizados construtores do mundo querido por Deus, em nome da fé. Ao longo de milênios, a catequese das Igrejas cristãs centrou-se em dogmas, doutrinas, moralismo, sacramentalização e devocionalismos, sob a batuta de um clericalismo pouco aderente ao Evangelho. Resultaram e resultam, daí, igrejas, movimentos, grupos e instituições superficialmente cristãos, cujo rosto evangélico se torna, sempre mais, difícil de se identificar, tal as dimensões do fanatismo, das divisões, das guerras e do ódio que promovem.

Esse cenário se torna terreno fértil para a ação perniciosa de ideologias políticas e seus “gurus”, infiltrados nas religiões e nas igrejas, para cooptá-las. Os efeitos maléficos se tornam patentes para quem discerne a realidade na perspectiva da fé, com os olhos fixos em Jesus de Nazaré, “autor e consumador de nossa fé” (Hb 12,2). Cristãos e cristãs que agem à revelia de Jesus de Nazaré, narrado nos Evangelhos, se tornam seus traidores, quais novos Judas Iscariotes. Assim, a desonestidade teológico-cristã (= traição de Jesus) se multiplica descontrolada pelo agir irresponsável dos que não se dão ao trabalho de se perguntar se Jesus de Nazaré aprovaria ou não o que dizem e fazem, invocando o nome dele. Afinal, não é correto dar por descontado que Jesus aprovaria tudo quanto seus seguidores fazem e ensinam apresentando-se como discípulos dele. O segundo mandamento do Decálogo – “Não pronunciarás em vão o nome de teu Deus, pois Deus não deixará impune aquele que pronunciar em falso o seu nome” (Ex 20,7) –, pode ser aplicado a quem banaliza o nome de Jesus de Nazaré, sem tomar consciência de seu ato. O nome de Jesus tem sido largamente profanado pelos “cristãos” e os que o profanam não se dão conta!

A polarização resultante dos debates político-ideológicos entre os cristãos e suas igrejas exige dos discípulos e das discípulas de Jesus de Nazaré criterioso discernimento, de modo a não se desviarem da fé, antes, provarem seu compromisso com o Reino de Deus, na fidelidade ao Mestre e Senhor. Dentre tantos critérios a serem extraídos de uma atenta meditação dos Evangelhos, elenco cinco que me parecem fundamentais.

 

  1. A sorte dos empobrecidos, dos marginalizados e dos que não contam. Os autênticos discípulos e discípulas de Jesus caracterizam-se pela compaixão e pela misericórdia no trato com as “massas sobrantes” do nosso mundo, com seus muitos rostos. A parábola do bom samaritano lhes serve de inspiração (Lc 10,29-37). Eis porque, em face de qualquer discurso, dos mais piedosos aos mais radicais, sempre se perguntarão: quais as consequências para os mais pobres? Quem fala está, de fato, preocupado com os marginalizados e explorados pelas elites financeiras, políticas, religiosas, sociais? Está interessado na criação da sociedade querida por Deus, sem opressores e oprimidos, ricos e pobres, privilegiados e invisibilizados? Discursos e ações que visam manter o status quo iníquo e contrário ao querer de Deus serão denunciados e repudiados em nome da fé e do compromisso batismal. Aplaudi-los e se colocar do lado dos que os promovem se torna pecado mortal para quem ousa se considerar discípulo do Nazareno. Desses se espera serem aguerridos na luta contra a injustiça, causadora de fome e morte para enorme parcela da humanidade, cujo clamor sobe aos céus!
  2. A busca sincera da verdade. No Sermão da Montanha, Jesus de Nazaré insistiu no valor da palavra dada e ensinou os discípulos e as discípulas a serem cuidadosos no que dizem, com o imperativo: “seja o vosso ‘sim’, sim e o vosso ‘não’, não. O que passa disso vem do Maligno” (Mt 5,37; Tg 5,12). A Carta de Tiago contém uma longa reflexão sobre o uso incontrolado da língua (3,2-12), chegando a dizer: “quem não peca ao falar é pessoa íntegra, capaz de frear o corpo inteiro” (v. 1). Eis porque quem segue Jesus de Nazaré está sempre atento ao que fala para não faltar com a verdade e, menos ainda, dar corda à mentira, à calúnia, à difamação e ao falso testemunho. Num momento em que as fake news se espalham de maneira despudorada mormente nas redes sociais, os cristãos e as cristãs se esforçarão para falar sempre a verdade, se recusarão a compartilhar conteúdo sem a devida verificação e estarão muito atentos ao que ouvem, perguntando-se: tal interpretação dos fatos é correta? Que interesses se ocultam por trás dessas palavras enfáticas (das mais “santas” às mais ideologizadas)? Quem fala, de fato, se importa com a verdade ou é mentiroso contumaz? Tal controle cristão de qualidade será exercido, de modo especial, no ambiente digital com seus muitos recursos tecnológicos para transformar mentiras descaradas em verdade e, assim, ludibriar os incautos. Toda atenção é pouca!
  3. A valorização do diálogo e do respeito ao diferente. Uma das muitas facetas macabras dos embates ideológico-políticos consiste na multiplicação de discursos intolerantes, com o objetivo de ofender os adversários, tidos na conta de inimigos a serem eliminados. Ao se recusar a busca de soluções para os problemas pela via do diálogo sincero com foco no bem-comum, se abre espaço para os golpes baixos, a falta de respeito e vilipêndio inescrupuloso do outro, cuja dignidade não se reconhece. Certa vez, Jesus repreendeu os discípulos Tiago e João por serem implacáveis e agressivos com quem lhes negou hospitalidade, a ponto de pretenderem destruí-los: “Senhor, queres que ordenemos que desça fogo do céu para consumi-los?” (Lc 9,54-55). Muitos cristãos de aparência, envolvidos com ideologias perversas, sem discernimento, tornam-se merecedores da repreensão do Mestre Jesus. Fechados para o diálogo e desrespeitando quem tem pensamentos e posições diferentes, caminham na contramão do projeto de Reino. Torna-se fácil identificá-los e denunciá-los, pois seu modo de proceder incompatível com a fé chama logo a atenção. E causa escândalo!
  4. A liberdade profética, em face de todas as instituições, inclusive, as religiosas. O compromisso de Jesus de Nazaré com o Reino de Deus levou-o a se posicionar com total liberdade, no confronto com as estruturas sociais, políticas e religiosas de seu tempo. A liberdade profética lhe valeu a morte de cruz! Teve coragem de relativizar o preceito sabático, ao afirmar que “o Filho do Homem é senhor até do sábado” (Mc 2,28). Reinterpretou alguns mandamentos do Decálogo e a outros declarou superados (Mt 5,21-48). Anunciou a destruição do Templo, considerado morada de Deus e meta de peregrinações: “dias virão em que não ficará pedra sobre pedra que não será demolida!” (Lc 21,6). Reconsiderou a prática da esmola, do jejum e da oração, dando-lhes um colorido novo (Mt 6,1-18). Foi avesso à religião pregada por certas lideranças, fardo pesado colocado nas costas das pessoas exploradas em sua boa-fé (Mt 11,28-30). Ao se centrar no querer do Pai e seu Reino, Jesus superou a tentação do corporativismo e ensinou a não encobrirmos os malfeitos das nossas próprias Igrejas, como se fossem perfeitas, cobrindo de defeitos a dos outros. No âmbito político, seria o caso de não vermos as corrupções de nosso partido, ao centrarmos as críticas nos partidos alheios. No âmbito social, seria o caso de pensar que só os ricos cometem injustiças, quando também nas camadas mais pobres da sociedade se multiplicam injustiças inomináveis. Jesus ensinou-nos a sermos autocríticos, antes de nos tornarmos críticos dos outros (Mt 7,1-5)!
  5. A defesa da Casa Comum e a sustentabilidade do planeta. Essa pauta cristã foi levada adiante pelo Papa Francisco, de modo especial, com a Encíclica Laudato Si’ (2015). Para além das questões ecológicas, Francisco se preocupava com a sorte dos pobres, os primeiros e os mais afetados pelas mudanças climáticas, vitimados por um sistema econômico depredador do meio ambiente e sua sede voraz de lucro, alimentada pelo consumismo exacerbado e inconsequente que não considera serem limitados os recursos naturais com os quais a humanidade pode contar. O cosmos contemplado por Jesus de Nazaré, que o tornou metáfora de seus ensinamentos, mormente, nas parábolas, corre o risco de ser desfigurado e, até mesmo, desaparecer, pela insensatez dos poderosos e dos que os apoiam, dentre eles, cristãos e cristãs. Por isso, nos conflitos ideológico-políticos e outros será preciso verificar como as partes se posicionam em face das questões socioambientais e se deixam afetar pela sorte dos mais pobres. O leque de possibilidade vai desde a indiferença quanto à sustentabilidade do planeta e os pobres, até abertos crimes contra o meio-ambiente, bem conhecidos e documentados, e seus desdobramentos catastróficos. Os discípulos de Jesus terão suficiente discernimento para saber como se posicionar!

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Jesus de Nazaré continua a confrontar os discípulos e as discípulas com seu imperativo forte: “busquem, em primeiro lugar, o Reino de Deus e sua justiça e tudo mais lhes será dado em acréscimo!” (Mt 6,33). Tem-se, aqui, o critério fundamental para o discernimento dos conflitos ideológicos, com seus variados matizes, dos políticos aos religiosos: tudo quanto se coaduna com o Reino terá o apoio e o envolvimento dos cristãos e cristãs; pelo contrário, tudo quanto destrói as sementes do Reino espalhadas pelo mundo será denunciado e combatido. No embate de opiniões e tendências, os cristãos e as cristãs de verdade sabem identificar o que mais se aproxima do imperativo evangélico e são capazes de identificar o que dele se afasta e, pior ainda, o que o contradiz e o nega e, com coragem profética, se dispõem a estar do lado certo. Aí, com certeza, estarão na companhia de tantas pessoas compassivas e misericordiosos, até mesmo ateias, lutando pelos mesmos ideais, correspondentes ao querer de Deus para seus filhos e filhas, para a humanidade. “Venha a nós o vosso Reino!”

Pe. Jaldemir Vitório, SJ é professor e pesquisador no departamento de Teologia da FAJE

14/08/2025

Foto: Shutterstock

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