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O coração, profundidade onde Deus mora

Alfredo Sampaio Costa SJ

O coração é o centro da pessoa, o campo da profundidade, na qual alma e corpo entrelaçam as suas raízes[1]. Estamos dispostos a deixar nossa zona de conforto, a abandonar a segura superficialidade de nossa vida espiritual, para adentrarmos no mais íntimo de nós mesmos?

Aprendamos hoje da sabedoria dos Padres:

Macário, o Grande, padre do quarto século, mestre espiritual, dizia em uma de suas homilias espirituais: “O coração, de fato, é o patrão e o rei de todo o organismo corpóreo, e quando a graça se apossa dos pastos do coração, reina sobre todos os seus membros e sobre todos os pensamentos; nele está a inteligência, nele se encontram todos os pensamentos da alma, a qual dele espera o bem”[2].

Outro grande mestre, Teófano, o Recluso, afirmava: “Se o coração é o centro da pessoa humana, então é através dele que a pessoa entra em relação com tudo o que existe[3].

Há uma expressão antiga para designar o que chamamos “coração”: é o termo “fundo da alma”[4]: Já S. Agostinho fala de “fundus” da alma ou da “memória” (Confissões X,8,15; PL 32.785). Mas será   M. Eckhart a desenvolvê-la em um sentido metafísico para além de todo sentido sensível, espacial ou psicológico quando afirma: “De fato ele é ao mesmo tempo alto e profundo” (In Sapientiam, n.48; In Exodum n. 242). S. Alberto Magno já tinha afirmado o mesmo no seu Comentário ao Evangelho de S. Lucas: “Altum et profundum idem est” (In Lucam 1,32; Opera Omnia, éd. A. Borgnet, Paris 1890-1899, t.22, 76b). Neste sentido, a expressão “fundo da alma” pode ser aproximada a outras expressões do vocabulário espiritual como “a parte superior da alma”, “o cume da alma”, “a centelha”, a “sindérese”.

Nas suas variadas expressões, remete a uma perfeita interioridade, como Santo Tomás de Aquino reuniu na sua reflexão: “Deus é interior a cada um de nós, como o ser próprio de uma coisa é interior a essa coisa, a qual não poderia nem começar nem durar sem a operação de Deus” (Sent. I, dist. 37 q.1 a. 1 sol).

Eckhart utiliza dois símbolos para desenvolver o seu pensamento sobre o fundo da alma: o da semente jogada na terra e o do poço.  A imagem da semente que lança as suas raízes na terra se liga facilmente com a ideia da “semente de Deus” plantada no interior do ser humano: “Deus está no fundo da alma com toda a sua divindade” (Predigt 10, DW 1, p. 162,5). Eckhart compreende essa semente como a presença de Deus na alma, como o nascimento de Deus na alma.

A imagem do poço é utilizada no seu escrito “O homem nobre” quando escreve: “A imagem de Deus, o Filho de Deus, está no fundo da alma como um poço de água viva” (DW 5, p.113,5). Esta presença de Deus vai muito além de uma simples interioridade “natural”: pois só Deus pode penetrar no íntimo do espírito da sua criatura. Já S. Tomás de Aquino afirmava o mesmo: “Só Deus pode penetrar no íntimo da alma” (Summa Teológica 1 a. q. 89 a. 2 obj. 2).  Portanto, a alma criada não possui as suas raízes em si mesma. Todo ser recebe o seu ser de Deus!

Eckhart  deixou vários sucessores no uso dessa linguagem: Jean Tauler, Henri Suso, Jean Ruysbroeck, Louis de Blois, e também Santa Teresa de Ávila e S. João da Cruz.

No Séc. XVII, na França, a expressão “fundo do coração” recorre com insistência. No assim chamado “ambiente devoto”, o termo “fundo” é uma tentativa de traduzir o que o alemão medieval “grunt” de Echkart queria dizer. Este termo procurava encontrar um lugar, na topografia psicológica, onde se exprimisse simbolicamente um processo de geração, o florescer de uma nova e misteriosa vida[5].

Se o fundo do coração é o centro da pessoa, onde é impresso a marca da imagem divina, onde acontece a inserção da graça[6], a ele é preciso aplicar a impressionante fórmula de S. João da Cruz: “O centro da alma é Deus” (Chama Viva, 1,3). S. Francisco de Sales também usa a expressão no seu “Tratado do Amor de Deus” (livro 6, cap.7).

A ursulina Marie de l’Incarnation (1599-1672) utiliza diversas expressões para descrever essa realidade: “centro da alma”, “o quarto do Esposo”, “a sede de Deus”, a “morada de Deus”, “a parte suprema da alma”, “o mais íntimo do ser”, “a substância do espírito”[7].

A palavra “centro” se encontra com frequência unida a até mesmo identificada a Deus presente na alma: “A alma está unida a Deus como ao seu centro” (Écrits, t.1, p.200, 217, 323; t.4, p. 248-249). O fundo da alma é a unidade da alma, tocada intuitivamente por meio de uma experiência passiva da unidade da essência divina.

O fundo se determina por um “sim” ou por um “não”[8]: é uma liberdade a decidir-se, um atravessar íntimo rumo à escolha mais dramática da existência[9].

A devoção ao Coração de Jesus nos leva a fixar nosso olhar no Coração Amante e Amoroso do Senhor, verdadeira imagem de Deus, todo-amor. O seu Coração é símbolo e sinal de uma existência totalmente ex-cêntrica. A pessoa de Jesus é “ser-para-os-demais”[10].

Trata-se, pois, de um encontro de coração a coração. Não é por acaso que muitos santos falam da “troca de corações”, como Santa Catarina de Sena, para expressar esse intercâmbio de amor profundo.

Portanto, o que está em jogo ao falarmos de uma espiritualidade do Coração de Jesus é se estamos dispostos(as) a conformar o nosso coração (ser, pessoa, totalidade) a um Coração que expressa o Amor inesgotável do Pai por nós.

 

Alfredo Sampaio Costa SJ é professor e pesquisador no departamento de Teologia da FAJE

 

[1] Jacques SERR /Olivier CLEMENT, La preghiera del Cuore, Editrice Ancora, Milano 1980, 14.

[2] Macário, Hom. Spir. XV,20.

[3] Teófano, o Recluso, Compêndio Moral, 306.

[4] Cf. Héribert FISCHER, “Fond del’ ame. Chez Eckhart”, in DSAM V, coll. 650-651.

[5] Cf. Charles-André BERNARD, Théologie Symbolique, Téqui, Paris 1978, 221-226.

[6] Benedetta PAPASOGLI, “Il  ‘Fondo del cuore’ dalla mistica all’etica nel Seicento Francese”, in Antropologia dei maestri spirituali (a cura di Ch.-A. BERNARD), Paoline, Cinisello Balsamo (MI) 1991. 317.

[7]  Cf. Fernand JETTÉ,  “Fond del’ ame. Chez Marie de l’Incarnation”, in DSAM V, coll. 661-662.

[8] Cf. SAINT-CYRAN, “Du Coeur Nouveau”, in Théologie Familière, avec autres petits traités de devotion, Muguet, Paris 1669.

[9] Cf. Benedetta PAPASOGLI, “Il  ‘Fondo del cuore’ dalla mistica all’etica nel Seicento Francese”, 321.

[10] Alejandro DÍEZ-MACHO, “Fundamentación bíblica de la devoción al Corazón de Jesús”, em: Pablo Cervera Barranco, Enciclopedia temática del Corazón de Cristo, Madrid: BAC 2017,  210-211.

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