Elton Vitoriano Ribeiro SJ
Ansioso vou com amigos ao Palácio das Artes (Belo Horizonte, MG) no dia 12 de novembro de 2021. Vamos viver esta extraordinária experiência artística que é ver o Grupo Corpo dançando. Para a filosofia, o corpo é a primeira categoria de nossa estrutura fundamental humana. Nosso corpo é uma evidência da nossa existência. Corporalmente nascemos, vivemos e morremos. É nele e com ele que vivemos e construímos todas as nossas relações com os outros no mundo histórico. Somos corpo e corpo encarnado! Pelo corpo nos constituímos e nos expressamos. Todas as nossas ações cotidianas, que tecem a trama da vida humana, são corporais, das mais simples como um aperto de mão, até as mais sofisticadas como a contemplação do pôr-do-sol.
Para o filósofo Merleau-Ponty (Fenomenologia da percepção), o corpo enquanto expressividade é tão importante que ele chega a compará-lo a uma obra de arte. Nessa comparação, acredito, a arte da dança é eloquente. A linguagem do movimento corporal presente na leveza dos gestos, o equilíbrio, as possibilidades criativas expressas nas diversas formas de dançar, a consciência corporal que a dança exige, o desenvolvimento físico que ela proporciona, a sociabilidade que ela pode gerar na dança em par ou em grupo, as danças de roda, as danças rituais, tudo isso é vida em movimento. Por isso, não é à toa que a Bíblia apresenta vários exemplos de dança: o grande Rei Davi dançando com todas as suas forças diante de Deus (2Sm 6,14), as crianças imitando os movimentos das danças em suas brincadeiras (Mt 11,17) e tantos salmos onde Deus transforma o luto e a tristeza, em dança e júbilo (Sl 30,12). A dança é de Deus!
Acredito, também, que não é fortuito os antigos colocarem a dança como uma das principais artes cênicas junto com a música e o teatro. Assim, chamar um grupo de dança de Grupo Corpo é uma ideia simples, direta e genial. Claro, para a tradição cristã o humano não se reduz a seu corpo, tanto que nós podemos contemplá-lo e nos distanciar dele reflexivamente. Mas, como não lembrar a oração (apócrifa) de Santo Agostinho ao ver, com nossos olhos, com nosso corpo, o Grupo Corpo dançando: “Ó homem, aprenda a dançar, caso contrário os anjos do céu não saberão o que fazer contigo”.
Nesta noite que narro, o espetáculo de estreia, o primeiro depois da paralização forçada pela pandemia, chamava-se Primavera (do latim antigo: Primo vere = primeiro verão). Com as músicas da dupla Palavra Cantada, com um maior distanciamento entre bailarinos e bailarinas, com muitos solos, duos, trios e alguns pas de deux; os movimentos transmitiam uma sensação de leveza, de delicadeza, de proximidade. Talvez seja isso a primavera, o reflorescimento da vida depois do inverno, lenta, leve, colorida e vivificante. A primavera: iluminando com cores a realidade e enchendo-a de alegria, de luz e de serenidade. A cor dos vestidos das bailarinas em movimento me parecia como as cores que enchem nossos olhos diante da primavera florescendo. Aqui, também, como não lembrar dos versos de Pablo Neruda no Poema 14 que diz: “Quero fazer contigo o que a primavera faz com as cerejas”. Essa dança primaveril, colorida, alegre, nos apresenta a beleza poética da dança contemporânea.
Finalmente, voltando para casa, ainda inundado pelas imagens e pelos movimentos narrados, lembrei-me da história contada pela grande bailarina Pina Bausch que disse: “Certa vez visitei ciganos na Grécia. Estávamos sentados juntos e conversávamos e a certa altura eles começaram a dançar, e eu devia acompanhá-los. Tive um medo enorme e a sensação de que não conseguiria. Aí veio ter comigo uma garotinha, com os seus 12 anos, que não parava de insistir que eu dançasse também. Dizia ela: Dance, dance, senão estamos perdidos (Folha de São Paulo, 27/08/2000)”. Será que é por tudo isso que Nietzsche disse, certa vez, em Assim falou Zaratustra: “Eu só poderia crer num deus que soubesse dançar”? Ora, mas isso já é uma outra história.
Elton Vitoriano Ribeiro SJ é professor e pesquisador no departamento de Filosofia, e reitor da FAJE