Washington Paranhos SJ
Estamos acompanhando nesses últimos dias algumas imagens cruéis que nos escandalizam. Situações dramáticas agravadas pela pandemia, mas também fruto da insensibilidade, da ganância e ignorância de alguns que pensam apenas em si. Primeiro, ficamos chocados com a notícia estampada nos jornais de que “Pessoas fazem fila para doação de ossos em açougue de Cuiabá”. Moradores de Mato Grosso, o estado com o maior rebanho bovino do país (cerca de 32 milhões de cabeças de gado), fazem fila para receber ossos em um açougue que doa restos do processo de desossa do boi.
Na última semana as imagens de pessoas recolhendo ossos e outros produtos descartados por supermercados também chocaram o mundo. O motorista do caminhão que recolhe os ossos disse: “Antes, as pessoas passavam aqui e pediam um pedaço de osso para dar para os cachorros. Hoje, elas imploram por um pouco de ossada para fazer comida. O meu coração dói”. Esses são apenas um pequeno retrato da fome em nosso país, fome que se intensificou e se agravou não só devido à pandemia, mas também à alta absurda do preço de alimentos básicos.
Sabemos que a crise mundial provocada pela pandemia é sentida em todos os países, mas na América Latina e no Caribe a situação ficou ainda pior, com o aumento da fome de 19% para 44 milhões de pessoas atingidas pela insegurança alimentar moderada e outros 21 milhões pela grave insegurança alimentar.
Para entendermos o problema: na Venezuela, 77% da população passa fome e 94,5%vivem na pobreza. No México são 44%, na Colômbia 42,5%, no Brasil segundo o IPEA (Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada) 54% das famílias brasileiras são pobres, enquanto para a FAO um quinto da população passa fome. Na Argentina, mais de 40% vivem na pobreza e lutam para colocar comida na mesa todos os dias. Na Bolívia, 39% têm o mesmo problema. No Haiti, a situação é ainda mais complicada. De acordo com um relatório recente da Comissão Econômica para a América Latina e o Caribe (CEPAL), a taxa de pobreza extrema na região atingiu 12,5% e a de pobreza 33,7% no ano passado. Segundo a CEPAL, as transferências econômicas feitas por diferentes governos durante o pior momento da pandemia impediram que essas taxas se deteriorassem ainda mais, mas a situação continua dramática. Na verdade, estamos falando de 90 milhões de seres humanos que vivem com menos de um dólar por dia e 230 milhões de pobres. Apenas na América Latina e Caribe. Todos os países apresentam um fenômeno que está afetando toda a região com o maior exacerbação desde que, no ano passado, a Covid-19 caotizou essa parte do mundo mais do que qualquer outra. Com menos de 9% da população mundial, de fato, só a América Latina registra 21% das infecções e 34% das mortes planetárias.
Não deveria existir alguém morrendo de fome e dormindo no chão, em um país que se diz cristão, com milhares de templos luxuosos, espalhados por todas as cidades, sob a direção de pseudos “missionários” milionários. O mesmo povo que diz “Deus acima de tudo” é o mesmo que aplaude e defende aqueles que geram uma situação desumana e fazem exatamente o oposto de Jesus.
Um outro ponto importante que devemos lembrar é que o Agro não é pop. Estudos apontam que a fome é resultado também do agronegócio. O setor não só não mata a fome, como fomenta a desigualdade que a cria. O agronegócio não só não traz alimentos para a população brasileira – que só vê aumentar o alarmante nível da fome, como também o setor fomenta a desigualdade, que faz com que 55% da população não tenha certeza se terá o suficiente para se alimentar no dia seguinte.
Diante destas evidências, poderíamos nos perguntar: e como os primeiros cristãos lidavam com a fome? “Entre eles ninguém passava necessidade, pois aqueles que possuíam terras ou casas as vendiam, traziam o dinheiro e o colocavam aos pés dos apóstolos; depois, ele era distribuído a cada um conforme a sua necessidade” (At 4,34-35). Isso não era uma lei, mas uma atitude que brotava espontaneamente do coração. Diferente de grupos católicos tradicionalistas que afirmam que a Igreja tem que se preocupar com a salvação da alma da pessoa e não se envolver com questões políticas e sociais, os primeiros cristãos procuravam observar essa orientação bíblica: “Quando no seu meio houver um pobre… não endureça o seu coração, nem feche a mão para esse irmão pobre… Abra a mão em favor do seu irmão, do seu pobre e do seu indigente no lugar onde você está” (Dt 15,7.11).
Precisamos recordar mais uma vez as palavras de Gandhi: “Na terra há o suficiente para satisfazer as necessidades de todos, mas não para satisfazer a ganância de alguns”. A fome não é consequência da quantidade de pessoas na face da terra, mas de dois fatores principais: a desigualdade social e o desperdício de alimentos. Quando alguém da Igreja de forma profética, levanta sua voz para denunciar essa desigualdade, a qual gera não apenas fome, mas também violência e morte, esta pessoa não está pregando o comunismo, não está fazendo um “discurso de esquerda”, mas alertando a consciência de cada cristão para uma verdade básica do Evangelho: “Eu tive fome, e vocês me deram de comer… Todas as vezes que vocês socorreram pessoas necessitadas, foi a mim que vocês socorreram” (citação livre de Mt 25,35.40).
O Evangelho de João nos fala que, “levantando os olhos e vendo que uma grande multidão estava vindo ao seu encontro, Jesus disse a Filipe: ‘Onde vamos comprar pão para que eles possam comer?’” (Jo 6,5). Hoje Jesus dirige essa pergunta a cada um de nós, seus discípulos, porque Ele deseja que cada um de nós se deixe afetar pelo sofrimento que afeta os pobres à nossa volta. Enquanto católicos tradicionalistas desejam missas em latim, a volta do uso do véu para as mulheres e comunhão dada na boca, Jesus nos pergunta se as nossas mãos, que se estendem para receber a Eucaristia, também têm se estendido para dar pão a quem tem fome.
A pergunta que Jesus dirigiu a Felipe foi “para pô-lo à prova” (Jo 6,6). Hoje, da mesma forma, Jesus também está pondo as igrejas cristãs à prova, igrejas que o proclamam Senhor e Salvador, igrejas que afirmam crer no seu Evangelho. Ao nos pôr à prova, Jesus está verificando o nosso nível de humanidade, de compaixão, de solidariedade. Jesus está verificando qual cristão/igreja se esforça em se configurar a Ele, que procurou se colocar junto aos pobres e sofredores, e qual cristão/igreja configura-se com os fariseus, que usaram do culto religioso como forma de se manterem distantes dos pobres, dos pecadores, dos sofredores. São João Crisóstomo nos ajuda a fazer nosso exame de consciência: “Se você não conseguir encontrar Cristo no mendigo na porta da igreja, não o encontrará no cálice”.
Mas, afinal de contas, onde está a solução para o problema da fome em nosso mundo? Está na consciência, no bolso e nas mãos de cada um de nós. Tanto na época dos profetas como na época de Jesus, a fome foi saciada com “pães de cevada” (cf. 2Rs 4,42; Jo 6,9), alimento de pessoas pobres.
Quais são seus “pães de cevada”? Quais são os pequenos recursos que você tem consigo, mas não tem feito uso deles? O nosso grande erro enquanto povo brasileiro é esperar que a solução para os problemas do nosso País venha de Brasília, do Palácio do Planalto, do Congresso, do Senado ou do STF, exatamente das pessoas que mantêm o nosso País na indigência, na ignorância, na pobreza, na falta de saúde e de educação porque só assim eles podem continuar a serem eleitos como falsos messias, falsos salvadores da Pátria.
“Quando todos ficaram satisfeitos, Jesus disse aos discípulos: ‘Recolhei os pedaços que sobraram, para que nada se perca!’” (Jo 6,12). Já sabemos que o outro lado da moeda da fome é o desperdício de alimento. Segundo São João Crisóstomo, Deus dá riqueza “não para você desperdiçar com prostitutas, bebida e comida sofisticadas, roupas caras…, mas para distribuir aos necessitados… Se você tem dois pares de sapatos, um pertence aos pobres”. Nada deve se perder; nada deve ser desperdiçado; tudo deve ser partilhado.
Além de não desperdiçar comida, água, energia, é preciso não desperdiçar a oportunidade de alimentar relacionamentos que nos são significativos. Nossas relações também precisam ser alimentadas.
“A minha fome é, para mim, um problema material; a fome do outro é, para mim, um problema espiritual”. Esta é uma daquelas frases marcantes que encontramos e ficam gravadas na memória, mas não tenho a fonte e nem certeza absoluta da autoria. Quanto recordo é de Charles Péguy.
Washington Paranhos SJ é professor e pesquisador no departamento de Teologia da FAJE