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O cristianismo como religião do “chamado” e não do “sagrado”

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Geraldo De Mori SJ

“A quem enviarei? Quem irá por nós?” (Is 6,8)

Já há algum tempo a Igreja católica do Brasil dedica o mês de agosto à oração pelas vocações. Ela aprendeu essa prática com o próprio Jesus que, segundo o evangelho de Mateus, “ao ver as multidões, teve compaixão, pois pareciam como ovelhas sem pastor. Então disse aos seus discípulos: a messe é grande, mas os operários são poucos. Orai ao Senhor da messe que envie operários para a sua messe” (Mt 9,36-38). Em geral, a pastoral vocacional da maioria das dioceses, paróquias e congregações religiosas, identifica esse apelo do Senhor com vocações específicas: ministério ordenado, vida religiosa, vida familiar ou conjugal, serviços eclesiais diversos. Certamente essas vocações são todas necessárias à Igreja e é necessário ajudar os/as cristãos/ãs, sobretudo os/as adolescentes e jovens, a descobrirem o caminho para o qual Deus os chama. Porém, antes de assumir alguns desses caminhos de realização da própria existência ou antes de se colocarem a questão do serviço ao qual são chamados na construção do corpo de Cristo, é importante levá-los a descobrirem a própria existência humana como chamado.

Com efeito, a Bíblia está cheia de histórias de chamados, que muitas vezes, na pastoral, são tomados como motivadores para a descoberta de uma vocação particular. No entanto, por detrás dessas histórias todas há uma maneira de Deus dizer-se, ou, como se fala na teologia, de revelar-se. Segundo alguns historiadores da religião, o divino ou o transcendente foi descoberto pela humanidade como “sagrado” ou “santo”, despertando “temor” e “tremor”, atraindo ou afastando, podendo ser uma potência benéfica ou maléfica. Por isso, em geral, o “sagrado” foi identificado com aquilo que é “separado”, que não pertence a esse mundo, que, por sua vez, é da ordem do “profano”. Nesse sentido, as religiões nas quais se descobriu o “sagrado” são tidas como religiões epifânicas, pois o sagrado irrompe, seja em lugares tidos como santos, como uma montanha, um rio, seja em objetos, criados ou não por mãos humanas, seja em pessoas, pelo ofício que exercem, como os sacerdotes, as sacerdotisas, os adivinhos, os profetas.

Essa forma antiga e, se poderia dizer, quase que original de irrupção do sagrado, continua ainda presente na maioria dos imaginários religiosos. A antropologia religiosa a identifica como determinada pela visão, que é o sentido a partir do qual ela se forma. As pessoas buscam o maravilhoso, querem ver. Mas, além dessa atração, o sagrado também provoca repulsão, medo, pois, como é da ordem do mistério, pode esconder segredos que, caso sejam conhecidos ou violados, podem despertar a ira divina. Essa ambivalência do sagrado, que atrai e repulsa, caracteriza a maioria das religiões mágicas, que querem controlar o sagrado com rituais de todo tipo, em geral, marcados pela ideia do sacrifício. O sacrifício é justamente o “tornar sagrado”, ou seja, separar algo para a divindade, seja um objeto, seja dinheiro, seja uma oferenda, seja algo que é caro ou custoso à pessoa o oferece, pois implica renúncia. De fato, várias práticas religiosas creem que o “sacrifício”, que é penoso e se oferece a Deus, pode alcançar um benefício.

A fé bíblica, apesar de admitir sacrifícios e possuir uma série de rituais próprios às religiões marcadas pela ideia do sagrado, promove, a partir da teologia da vocação, uma revolução na compreensão de Deus e na relação que com ele o fiel é chamado a ter. Com efeito, já no relato bíblico da criação do capítulo 2 do livro do Gênesis, Deus não é o Totalmente outro, que causa “temor” e “tremor”, mas o oleiro que modela Adão, a quem confia o cuidado de um jardim, criado para ser sua moradia e a de todos os demais seres vivos, que nele vivem em harmonia. Deus “passeia toda tarde” nesse jardim (Gn 3,8). A ruptura dessa relação harmoniosa, conhecida como queda original (Gn 3), interrompe essa relação estreita entre Deus e aquele que ele criou para viver em comunhão com Ele, com os demais humanos e com toda a criação. Um longo percurso será então percorrido pelos descendentes de Adão e Eva, no qual Deus lhes mostrará como manter-se em sua presença na mesma harmonia para a qual os havia criado, através de um povo que ele escolheu para nele abençoar todas as nações da terra (Gn 12,3). E toda a história desse povo é a de uma relação de aliança, que supõe uma ligação íntima com Deus e também relações de fraternidade e justiça com os demais seres humanos e com os demais seres vivos e a criação inteira. Nessa história, inúmeras pessoas vão participar. Em geral, o processo de aprendizagem no qual Deus introduz esse povo e, através dele, a humanidade, é feito através de homens e mulheres especialmente chamados para isso. Esse chamado, ao qual a tradição bíblica e eclesial compreendeu como vocação, é sempre marcado por relações com Deus e com os demais. Em Jesus, esse caminho adquire um amadurecimento e uma plenitude que podem doravante ser compartilhados pelo conjunto dos que nele creem e buscam segui-lo, tornando suas vidas parecidas à dele. Para isso, quem crê conta com a assistência do Espírito Santo, que é quem move os corações e os modela cristicamente.

Portanto, mais que buscar o sagrado e querer movê-lo a ser benéfico, através de sacrifícios, a fé bíblica, e de modo ainda mais radical, a fé cristã, é uma fé relacional, interpessoal. O autor da carta aos Hebreus compreendeu isso tão bem que diz que em Jesus foram abolidos todos os sacrifícios. Jesus ofereceu a Deus o único sacrifício agradável, que foi sua própria vida enquanto manifestação de uma entrega absoluta ao Pai e de uma doação plena à humanidade. Por isso, ao recordar nesse mês de agosto o chamado divino, além de se valorizar as vocações específicas, como a do ministério ordenado, a da vida religiosa, a da vida matrimonial, a dos serviços prestados por leigos e leigas, é importante não esquecer a vocação primordial: ser chamado a ser filho/a no Filho, tornando-se como ele, homem e mulher em relação estreita de amizade com Deus, com os demais seres humanos e com toda a criação. A fé cristã, sem ignorar o lugar do sagrado na existência, deve descobri-lo como lugar de relação. Deus é antes de mais nada aquele a quem somos chamados a descobrir como Pai amoroso. Por isso, o mandamento primeiro, o mais importante, é amá-lo de todo o coração, com todas as forças. Indissociável dele se encontra o mandamento do amor ao próximo, chegando, à luz da vida de Jesus, que reconcilia tudo e todos, a amar os inimigos e fazer o bem a quem nos persegue. Oxalá o mês de agosto ajude os/as cristãos/as a redescobrir isso.

 

Geraldo De Mori SJ é professor e pesquisador no departamento de Teologia da FAJE

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