Geraldo Luiz De Mori SJ
“Bem-aventurados os que são perseguidos por causa da justiça, porque deles é o reino dos céus” (Mt 5,10)
Era o dia 16/11/1989. Muitos noticiários do mundo inteiro já começaram o dia com o anúncio do assassinato de seis padres jesuítas da residência da Universidade Centro-americana José Simeón Cañas (UCA), em El Salvador, América Central: Ignacio Ellacuría, Ignacio Martín-Baró, Segundo Montes, Amando López, Joaquín López y López, Juan Ramón Moreno Pardo. Além deles, foram também assassinadas duas mulheres: Elba Ramos, cozinheira e governanta da casa, e sua filha, Celina Ramos, de apenas 15 anos. As cenas do crime, promovido por representantes das forças do Estado, estarreceram o mundo. O caminho para esclarecimento do caso, embora lento, levou ao julgamento e à condenação dos principais mandantes. O compromisso dos “mártires da UCA”, como passaram a ser conhecidos os que foram assassinados tão brutalmente, alimentou o imaginário da geração que foi testemunha daquele terrível acontecimento. O ato de fazer memória, 35 anos depois, daquele crime hediondo, é não só necessário, mas, com o distanciar-se do tempo, levanta novas questões, que pedem outro tipo de reflexão.
35 anos separam o acontecido em El Salvador, em 1989, e o ano de 2024. No país centro-americano, a guerra deu lugar à paz, e, nos últimos anos, governa o país um “millennial”, ou seja, um presidente da assim chamada “geração Y”, que é a geração nascida após 1980, fortemente marcada pelas novas tecnologias. No caso do atual presidente de El Salvador, trata-se de um político com tendências autoritárias e populistas, que tem se destacado por uma política de segurança pública de “tolerância zero” com delinquentes, sobretudo jovens, que enchem as prisões do país. Esse modelo punitivista tem atraído muitos políticos na América Latina, servindo de modelo inclusive para políticos brasileiros. Em nível mundial, por uma espécie de “quase” coincidência, uma semana antes do assassinato na UCA, no dia 9/11/1989, havia caído o Muro de Berlim, que separava a então Alemanha Oriental, alinhada ao regime comunista da antiga União Soviética, e a Alemanha Ocidental, alinhada às democracias liberais ou social-democratas da Europa pós-segunda Guerra. A queda do muro de Berlim deu lugar à “expansão” da Europa saída da segunda Guerra, provocando, nos últimos anos, um realinhamento da Rússia, que está na origem do atual conflito que a levou à invasão e à guerra na Ucrânia.
Para além das mudanças drásticas que ocorreram em El Salvador e no mundo nesses 35 anos, é importante, no ato de fazer memória dos mártires da UCA, dar-se conta de um fenômeno importante que rodeia esse ato no momento presente: o da distância entre o acontecido em 1989 e o hoje dos intérpretes do que então aconteceu. A distância não é só temporal, mas também cultural e ideológica, ou seja, afeta o modo como se conhece o mundo e se valora o que nele ocorre. Muitos que contribuíram para que a memória “perigosa” dos mártires fosse preservada e continuamente reativada e atualizada, já morreram ou já não conseguem mais tornar credível para as novas gerações o que aconteceu em 16/11/1989 e seu significado. Por sua vez, a geração que vai aos poucos tomando o lugar da que foi protagonista do acontecido em 1989, nem sempre se interessa pelo passado ou não lhe confere o mesmo significado que a geração que o vivenciou. Como o tempo das “grandes narrativas”, que determinavam muitas opções ideológicas até a queda do muro de Berlim, tem dado lugar ao das “pequenas narrativas”, muitas das quais baseadas em temas identitários, torna-se mais difícil manter acesa a memória de um acontecimento que muitas vezes tem sido identificado com questões que já não mais afetam o conjunto da sociedade, como era o caso da guerra, contexto no qual aconteceram os assassinatos na UCA. Esse fenômeno sempre ocorreu, mesmo com Jesus.
De fato, as primeiras décadas que se seguiram à morte de Jesus foram marcadas pelo anúncio de sua ressurreição e da convicção de que o que havia acontecido com o Nazareno tinha um significado amplo, não só para o judaísmo, mas para toda a humanidade. Pode-se dizer que essa geração, a das “testemunhas” primeiras, foi, ao longo das décadas seguintes, cedendo o lugar para as novas gerações e para outros públicos, que não haviam conhecido Jesus, ou não haviam conhecido as testemunhas primeiras. Surge então outro “gênero literário” para falar do que aconteceu: os evangelhos, que narram a vida de Jesus, não se concentrando apenas no anúncio de sua morte e ressurreição. Esse fenômeno foi determinante na construção do que hoje são os textos canônicos do Novo Testamento, a partir dos quais as igrejas cristãs fazem continuamente memória de Jesus.
A Igreja nasceu desse ato contínuo de fazer memória de seu Senhor, e ela prossegue nesse ato, que assegura que o que aconteceu com Jesus continue interpelando as novas gerações dos que nele creem, conferindo-lhes sentido para a vida e ajudando-as a “prosseguirem” a presença e a ação de seu mestre no mundo. Os mártires da UCA fizeram isso de modo radical, e num lugar que não parecia tão “perigoso” para quem nele atuava, pois, em geral, o mundo acadêmico é o do aprendizado, o da pesquisa, o do debate de ideias, o da formação para atuar nos vários campos profissionais. Sua morte mostrou que “pensar é perigoso”, sobretudo se o pensar desperta para uma ação comprometida com as grandes questões que definem o presente e o futuro de uma determinada sociedade.
A memória dos mártires pode muitas vezes ser manipulada ou negligenciada. No caso dos mártires da UCA, o ato de fazer memória tem conseguido preservar o que de fato aconteceu, embora, seu impacto sobre as novas gerações já não seja o mesmo da que esteve mais próxima do acontecido. O momento do “anúncio”, como no caso de Jesus, já deu também lugar a momentos de um contar a história através de outros gêneros literários. Tudo isso, porém, defronta-se com o império de uma cultura presentista que parece não gostar da memória ou que é treinada para não se interessar por aquilo que lhe deu origem.
A sedução pelo presente, que caracteriza as gerações atuais, não é fruto apenas dos desdobramentos das tecnologias que invadem a vida da maioria da humanidade. Ela é programada pelos que querem transformar os cidadãos em consumidores. Mais que pensar no outro, ou no “nós”, como insiste o Papa Francisco, importa ocupar-se do próprio, de si mesmo, satisfazendo os inúmeros e infinitos desejos despertados pelos produtos vendidos pelo mercado, única grande narrativa em vigor na contemporaneidade.
O livro do Deuteronômio traz uma advertência importante, válida não só para o Israel bíblico, mas para cada pessoa, grupo e povo: “Cuidado, para que não te esqueças do Senhor, que te tirou da terra do Egito, da casa da servidão” (Dt 6,12). Quando uma pessoa ou uma coletividade perde a memória dos eventos importantes que estão na origem de sua própria identidade, não só ela corre o risco de não mais saber quem é, mas ela pode também ser mais facilmente manipulada. Viver somente no presente, como é a injunção da cultura pós-moderna atual, traz como consequências a manipulação e o fundamentalismo. Muitos grupos dizem, “mas isso foi importante naquela época, mas hoje já não é assim”. É verdade, não se pode querer perpetuar modos de fazer as coisas. É importante dar lugar para que as novas gerações inventem seu próprio presente. Mas, isso não pode ser feito a despeito do que as gerações anteriores fizeram. No caso dos mártires da UCA, eles remetem a um modo de viver profético da própria fé, num ambiente não tão simples, mas no qual deram um testemunho que lhes custou como preço a própria vida. Que o ato de recordar os 35 anos desse dom continue acendendo as brasas da profecia ainda hoje nas novas gerações, ajudando-as a serem fiéis ao mártir que está na origem de sua própria fé: Jesus de Nazaré, de cuja vida doada até o sangue, brota a salvação.
Geraldo Luiz De Mori SJ é professor e pesquisador no departamento de Teologia da FAJE
Imagem: Jesuits Global