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O discernimento e o conhecimento de Deus

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Alfredo Sampaio Costa SJ

Pedir conhecimento interno (1) para poder discernir

Poderíamos afirmar que o que buscamos no discernimento é sempre uma forma de conhecer. Conhecer a vontade de Deus, conhecer melhor a nós mesmos, conhecer melhor Jesus Cristo. Mas jamais se torna um fim em si mesmo. O conhecimento interno que se pedirá insistentemente ao longo dos Exercícios é em vista do “seguimento” e do “serviço por amor” (“para que mais o ame (a Jesus) e o siga”). Portanto, trata-se de um conhecimento que deve desembocar em uma práxis, em um agir renovado, expressão do desejo de conformar-se cada vez mais a Cristo (2). Inácio insiste que devemos pedir esse conhecimento sempre, para adentrarmos nos Mistérios da vida de Cristo e nos deixarmos conformar a Ele!

Deus só pode ser conhecido (re-conhecido) ao interno de um comunicar-se recíproco, onde a absoluta iniciativa pertence à livre relacionalidade de amor de Deus Pai à qual a criatura responde mediante um ato de fé.

O discernimento é a arte da vida espiritual em que eu compreendo como Deus se comunica a mim, isto é, salva-me. Trata-se de captar de modo existencial como se dá em mim a redenção em Cristo, por ação do Espírito redentor. Tal experiência fará brotar em mim uma gratidão sem medida e o desejo insaciável de responder com todas as minhas potencialidades a tanto amor recebido. Essa dinâmica do discernimento aparece nos momentos nos quais somos confrontados com o Projeto salvífico de Deus revelado no seu Filho Jesus Cristo, que Inácio nos Exercícios insere no limiar da Segunda etapa (semana), propondo o Apelo do Rei Temporal onde Deus é apresentado como tendo uma intenção salvífica para cada pessoa e para a História da humanidade (3). O que se propõe ao que faz os Exercícios é o acesso a uma nova “disposição da sua vida” (EE 1), a “ordenar a sua vida” (EE 21), a “investigar e a perguntar em que vida ou estado de nós se quer servir a Sua Divina Majestade” (EE 135). A forma particular que adotará essa práxis do seguimento para o exercitante deverá ser rezada e elaborada ao longo de todo o processo dos Exercícios e da vida toda (4).

Discernimento como atitude

Estamos habituados a fazer discernimentos em momentos-chave da nossa vida, normalmente para podermos tomar decisões importantes (5). O perigo é que só utilizemos tal recurso em situações-limites, e nos esqueçamos de formar um hábito continuado de discernir, como atenção orante à Presença e Atuação de Deus na nossa vida.

É preciso lembrar que os nossos exercícios e práticas ocasionais de discernir deveriam formar em nós uma atitude constante de atenção e docilidade ao Espírito. Trata-se de deixar-se conduzir, “sabiamente ignorante”, “sem querer nos antecipar ao Espírito”. Tal atitude é baseada em uma certeza experiencial de que Deus fala, se comunica a mim em todo momento e lugar. Assim o discernimento, pouco a pouco, se tornará um estilo de vida que impregna tudo o que somos e fazemos.

Seguramente não se trata de uma atitude fácil de ser alimentada e mantida. Tendemos sempre a relaxar e baixar as armas nos momentos de tranquilidade. O discernimento como atitude implica viver sempre uma relação aberta, dialogal, perscrutadora, de espera, de disponibilidade, na qual o que mais importa é fixar o olhar no Senhor.

Ao orientar Exercícios, sempre pergunto aos exercitantes ao começar se realmente estão dispostos a ouvir realmente o que o Senhor queira dizer a cada um, ainda que isso signifique mudar a própria vida!

Se assim vivemos, o discernimento como atitude nos impedirá de nos fecharmos em nós mesmos. Fará com que tomemos consciência que o mundo não gira ao redor de nós, mas que o epicentro de minha vida é o Senhor, a quem eu reconheço como a fonte da qual jorra tudo e para a qual tudo conflui.

A atitude do discernimento é aquela expressão orante da fé na qual a pessoa permanece naquela atitude de fundo de reconhecimento radical da objetividade de Deus Pai, Filho e Espírito Santo, Pessoas Livres. Nada tem de cálculo, de lógica indutiva, nem se parece com uma técnica de engenharia na qual eu peso meios e fins, nem se aproxima a uma discussão ou busca de consenso. Trata-se sempre de uma atividade orante, de um empenho constante de abrir mão do próprio querer e pensar. Uma tal atitude é impensável se não somos movidos por uma onda de amor, porque, para isso, é necessária uma humildade radical.

Discernimento como Escola de Liberdade:

Os Exercícios Espirituais são primeiramente um procedimento destinado a permitir ao sujeito escolher livremente a sua vida, seguindo as inspirações do Espírito Santo, pois “onde está o Espírito do Senhor, aí está a liberdade” (2 Cor 3,17). O ser humano será livre à medida em que aceitar qual é o seu “fim” (“louvar, reverenciar e servir a Deus N.S. (EE 23)).

O discernimento será uma ocasião privilegiada onde se aprenderá a decifrar e falar a língua do Espírito, que chama à liberdade (6). O discernimento está a serviço de uma decisão importante e decisiva a ser tomada. Todo o trabalho consiste precisamente em acolher o que vem de Deus para decidir-se realmente. Poder chegar a descobrir a Vontade divina e abraçá-la vem a provar que a sua própria liberdade tem origem em uma alteridade (7).

Gaston Fessard discerne nos Exercícios uma verdadeira fenomenologia da liberdade. À maneira de Inácio, a consciência do exercitante é conduzida a reconhecer, no percurso que efetua, “o movimento mesmo pelo qual a sua própria liberdade se engendra para a liberdade divina” (8).

Karl Rahner descreve o homem como absoluta abertura do espírito para o ser em geral e, portanto, também para o Ser Absoluto. Enquanto o homem não seja partícipe da visão imediata de Deus, será sempre e essencialmente, em virtude da estrutura fundamental de seu ser, alguém que presta ouvidos à palavra de Deus, alguém que deve contar com uma possível revelação de Deus, revelação que não consiste na representação direta e imediata do revelado na sua mesma identidade, mas sim na sua comunicação mediante um sinal, uma indicação do que se há de revelar (9).

Para nossa consideração:  Como podemos crescer na liberdade interior? Como criar o hábito de discernir e alimentá-lo ao longo da vida?

(1) O termo “conhecimento interno” poderia dar margem para uma interpretação intimista da espiritualidade inaciana, entendida como sendo um voltar-se para a intimidade do próprio ser, para o mundo dos movimentos interiores, desconectando-se do universo mais amplo das relações sociais, políticas, culturais e eclesiais. Ora, nada mais estranho ao espírito inaciano!

(2) Cf. Adolfo María CHÉRCOLES, “Conocimiento interno”, em: GEI, Diccionario de Espiritualidad Ignaciana, I, 404.

(3) Cf. Roger HAIGHT, Dynamics of Theology, Paulist Press, New York 1990, 156-157. Citado por William  A. BARRY, “Principle and Foundation”, in William A. BARRY, Letting God Come Close. An Approach to the Ignatian Spiritual Exercises, Loyola Press, Chicago 2001, 67.

(4) Cf. Francisco José RUIZ PÉREZ, “Hombre”, em: GEI, Diccionario de Espiritualidad Ignaciana, II, 945-946.

(5) Cf. Marko Ivan RUPNIK, O discernimento, 30.

(6) Cf. Dominique SALIN, “Libertad”, em : GEI, Diccionario de Espiritualidad Ignaciana, II, 1130.

(7) Sylvie ROBERT, Une autre connaissance de Dieu. Le discernement chez Ignace de Loyola. Cerf, Paris 1997, 333.

(8) Gaston FESSARD, La dialectique des Exercices Spirituels de Saint Ignace de Loyola, I, Aubier, Paris 1956, 7.

(9) Karl RAHNER, Oyente de la Palabra. Fundamentos para una filosofia de la religión. Editorial Herder, Barcelona 1967, 149.

Pe. Alfredo Sampaio Costa SJ é professor e pesquisador no departamento de Teologia da FAJE

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