Luiz Sureki, SJ
Embora possa servir a variadas interpretações, o Mito de Narciso é bastante conhecido. Narciso é um personagem da mitologia grega que se apaixona pela própria imagem, imagem essa que ele contempla no “espelho” das águas de um lago. Seu fascínio obsessivo por si mesmo havia lhe tornado incapaz de relacionamentos autênticos. Passava tanto tempo a admirar sua própria imagem refletida nas águas do lago que, um belo dia, num impulso de achegar-se o mais próximo possível ao reflexo dela, acabou caindo no lado e morrendo afogado. Diz uma versão do mito que, na margem do lago, naquele exato lugar onde ele se inclinara para ver-se nas águas, vindo a cair e a morrer afogado, nasceu uma flor (o narciso) que, de modo semelhante, cresce nas margens de lagos e se inclina de modo a refletir-se nas águas.
A “moral da história”, como diríamos hoje, é que quem ama apenas a si mesmo acaba se isolando do contato com os outros e se destruindo, já que a verdadeira vida e felicidade reclama o cultivo das relações de amor e amizade com os outros. O Mito serve como uma metáfora poderosa para nos alertar acerca do perigo da vaidade e o amor excessivo por si mesmo.
Na psicologia, o narcisismo foi estudado profundamente por Sigmund Freud, que o descreveu inicialmente como uma fase normal do desenvolvimento humano, mas que, em excesso, pode se tornar patológico. Freud sugeriu que o narcisismo está ligado à formação do ego e à maneira como nos relacionamos com o mundo exterior. Em níveis saudáveis, o amor por si mesmo é essencial para a autoestima e a confiança. No entanto, quando esse amor se transforma em obsessão, ele pode levar ao isolamento, à falta de empatia, à dificuldade de se conectar com os outros e, por fim, à morte na forma de um afogar-se na própria imagem.
No mundo contemporâneo, o narcisismo ganhou novas dimensões com o advento das redes sociais e da cultura da autoimagem. Plataformas como Instagram, TikTok, entre outras, incentivam a exibição constante de si mesmo, muitas vezes em busca (conscientemente ou não) de validação externa. Esse fenômeno tem sido chamado de “narcisismo digital”, onde a autoimagem é cuidadosamente construída e editada para atrair likes e comentários. O que se vê é o reflexo de si projetado numa versão idealizada. Há muita gente “se afogando na própria imagem”.
Certamente, é importante distinguir entre o narcisismo patológico e a busca saudável por autoconhecimento e autoexpressão. Enquanto o primeiro pode levar ao egocentrismo e à alienação, o segundo é importante para o desenvolvimento pessoal e a construção de uma identidade autêntica. A assim chamada “baixo autoestima” afeta milhares de pessoas. A chave está no equilíbrio: amar a si mesmo sem perder a capacidade de amar os outros, e reconhecer a própria beleza sem se tornar prisioneiro dela.
O caso é que muitas pessoas que projetam sua imagem diariamente nas redes sociais em busca de mais seguidores ou admiradores, mais cedo ou mais tarde cometem alguma gafe, dizem o que não devem, ultrapassam a margem da preservação da intimidade se expondo mais do que deviam, e, não raras vezes, não conseguem mais lidar de forma madura e equilibrada com aqueles comentários críticos (bem-intencionados ou não) que reclamam maior senso de realismo existencial. A verdade é que quem fica medindo sua autoestima pelos likes positivos que espera receber, tem tudo para se frustrar. Em primeiro lugar, porque a imagem transmitida falta, pelos menos em parte, com a verdade, de modo que os elogios recebidos nunca podem ser de todo verdadeiros porque eles se referem a uma imagem que não é de todo verdadeira. Em segundo lugar, porque quando os comentários recebidos não são os que se esperava receber, segue-se que, ou a distorção do projetado fica denunciada e o esforço em projetar-se se revelou, pelo menos em parte, inútil, “propaganda enganosa”, ou a realidade sincera, verdadeira do projetado não foi interpretada, reconhecida, aplaudida como tal. Em ambos os casos, o resultado é frustrante.
Uma interpretação diferente do Mito de Narciso foi apresentada pelo renomado escritor irlandês Oscar Wilde em seu ensaio “O Discípulo”, de 1893. Wilde inverteu a perspectiva tradicional do Mito, sugerindo que não era tão somente Narciso quem estava obcecado consigo mesmo, mas sim o lago que se via refletido nos olhos de Narciso toda vez que este vinha admirar-se nas suas águas. O lago sentia agora a falta de Narciso porque já não mais tinha o “espelho” dos olhos dele em que contemplava sua própria beleza. O lago sequer havia percebido que Narciso era realmente belo! Antes sentia e chorava silencioso a sua falta porque já não mais podia admirar sua própria beleza refletida no “espelho” dos seus olhos!
Narciso, no século XXI, não se curva sobre lagos, mas sobre telas. Cada like, cada comentário, cada reação não são apenas sobre admirar ou julgar a imagem do outro, mas sobre esculpir, na vitrine digital, a versão de si mesmo que igualmente se quer ver exposta. O que parece interação é, em essência, autoprojeção: o desejo de que o mundo veja em nós aquilo que idealizamos ser.
O fato é que o narcisismo é um conceito rico e multifacetado, que vai desde as raízes mitológicas até as complexidades da psicologia e da cultura moderna. A reinterpretação de Oscar Wilde nos convida a ponderar que o narcisismo pode não ser apenas uma questão individual, mas também relacional e social. Embora o lago refletisse a imagem de Narciso, não estava interessado em agradar a Narciso, mas em contemplar a si mesmo nele. Embora os “seus seguidores” nas redes sociais deem comumente um feedback positivo à sua imagem, podem não estar interessados em te agradar; estão apenas se vendo em você! Qualquer “tempestade” afetará o seu reflexo, quer porque sua imagem muda, quer porque águas revoltas nunca refletem imagens nítidas.
Dificuldade nos relacionamentos, falta de empatia, autoestima frágil, comportamentos destrutivos, saúde mental debilitada, isolamento social, falta de autocrítica, são alguns dos sintomas do narcisismo que adoecem a vida em sociedade. Talvez o maior problema do narcisismo esteja no fato de que pessoas narcisistas não admitem a possibilidade de estar contemplando uma imagem falsa de si mesmos!
Luiz Sureki, SJ é professor e pesquisador no departamento de Filosofia da FAJE
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