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O magistério de Francisco e a questão racial

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Manoel Godoy

Por tudo o que o Papa Francisco faz e fala, podemos considerá-lo um aliado importante na luta contra o racismo. Essa perspectiva precisa ser enquadrada num campo maior, não somente nas falas diretas contra o racismo. Ele vem insistindo na cultura do “encuentro y cercania”. Com esta cultura, crê Francisco que teremos condições de entabular diálogos construtivos rumo a uma sociedade mais fraterna.

Na sua mais recente encíclica, o Papa Francisco fez uma análise da conjuntura mundial onde ele destaca elementos que dificultam essa cultura. No primeiro capítulo, sob o nome de “Sombras de um Mundo Fechado” ele elenca os principais sinais dos tempos, que configuram um cenário sombrio contrário à fraternidade. O Papa constata que a conjuntura histórica vem dando passos à atrás, contrários o que se sonhou de um mundo globalizado e fraterno. Esperava-se um mundo mais integrado, superando conflitos antigos e criando base para um mundo onde o diálogo marcaria o concerto entre as nações, porém, o que se vê é o ressurgimento de nacionalismos fechados, exasperados, ressentidos e agressivos. Neste cenário, o descarte de seres humanos, a obsessão de cortar custos trabalhistas, a globalização sem rumo humano, a pandemia, a cruel exploração dos migrantes e o racismo são as constantes.

Francisco chama a atenção para a perda da consciência histórica. Diz: uma maneira eficaz de dissolver a consciência histórica, o pensamento crítico, o empenho pela justiça e os percursos de integração é esvaziar de sentido ou manipular grandes palavras, tais como democracia, liberdade, justiça, unidade. Critica a falta de um projeto que alcance a todos e não somente a alguns privilegiados. Vê como grande ameaça à fraternidade e à amizade social o mecanismo político em voga de exasperar, exacerbar e polarizar. Tal política suscita um clima de todos contra todos, onde o vencer é sinônimo de destruir. Hoje, um projeto com grandes objetivos para o desenvolvimento de toda a humanidade soa como um delírio. Lembra do projeto do cuidado da casa comum e do desinteresse por ele da parte dos poderosos do mundo.

Alerta também para a cultura e política do descarte mundial, onde não só os alimentos ou os bens supérfluos são objetos de descarte, mas muitas vezes os próprios seres humanos. Nesse mundo dominado por interesses econômicos, aumentou a riqueza, mas não a equidade e assim nascem novas formas de pobrezas. E nessa perspectiva, denuncia que os direitos humanos não são suficientemente universais.

Importante constatação do Papa Francisco também de que a solidão, os medos e a insegurança de tantas pessoas que se sentem abandonadas pelo sistema, fazem com que se crie um terreno fértil para o crime organizado. Este se apresenta como protetor dos esquecidos, cria uma rede que gera dependências de todo o tipo e fomenta uma sociedade marcada pela violência sistêmica. Na verdade, multiplicam-se cruelmente situações de violência em muitas regiões do mundo, a ponto de assumir os contornos daquele se poderia chamar uma terceira guerra mundial em pedaços. Nosso mundo avança em uma dicotomia sem sentido, pretendendo garantir a estabilidade e a paz com base em uma falsa segurança sustentada por uma mentalidade de medo e desconfiança.

Sobre a pandemia da covid-19, o Papa diz que por algum tempo ela fez perceber que todos estamos no mesmo barco; que temos um destino comum; que ninguém se salva sozinho. A corrida para um mundo onde o eixo é o mercado e onde tudo deve estar submetido aos seus ditames, de repente, com a pandemia teve um pequeno freio. Num parágrafo extremamente metafórico, Francisco descreve essa situação da seguinte maneira: alimentamo-nos com sonhos de esplendor e grandeza, e acabamos por comer distração, fechamento e solidão; empanturramo-nos de conexões e perdemos o gosto da fraternidade. Buscamos o resultado rápido e seguro, e nos encontramos oprimidos pela impaciência e a ansiedade. Prisioneiros da virtualidade, perdemos o gosto e o sabor da realidade. A pandemia poderia fazer-nos repensar nosso estilo de vida, nossas relações, a organização de nossas sociedades e, sobretudo, o sentido de nossa existência. Francisco retoma um conceito tão caro a ele e já desenvolvido na Laudato Sí – tudo está interligado. Crê que ele se aplique bem nessa realidade pandêmica.

Um outro tema muito caro ao Papa Francisco é a realidade da migração. Defende o direito dos migrantes de serem tratados fraternalmente, pois são pessoas dotadas de dignidade intrínseca de toda e qualquer pessoa. Critica o desenvolvimento de uma mentalidade xenófoba e lamenta que entre os que praticam esse sentimento haja pessoas que se dizem cristãs. Retoma sua afirmação de que as migrações constituirão uma pedra angular do futuro e do mundo. Por isso, é urgente superar sentimentos racistas e buscar uma convivência integrada entre todos os povos, não deixando que o medo nos prive do desejo e da capacidade de encontrar o outro.

E diretamente sobre o racismo, ele afirma: “O descarte do ser humano, que hoje se alastra, exprime-se de variadas maneiras como, por exemplo, na obsessão por reduzir os custos laborais sem se dar conta das graves consequências que provoca, pois, o desemprego daí resultante tem como efeito direto alargar as fronteiras da pobreza. Além disso, o descarte assume formas abjetas, que julgávamos já superadas, como o racismo que se dissimula, mas não cessa de reaparecer. De novo nos envergonham as expressões de racismo, demonstrando assim que os supostos avanços da sociedade não são assim tão reais nem estão garantidos duma vez por todas.”

E em outro momento, afirma: “Existem periferias que estão próximas de nós, no centro duma cidade ou na própria família. Também há um aspecto da abertura universal do amor que não é geográfico, mas existencial: a capacidade diária de alargar o meu círculo, chegar àqueles que espontaneamente não sinto como parte do meu mundo de interesses, embora se encontrem perto de mim. Por outro lado, cada irmã ou cada irmão que sofre, abandonado ou ignorado pela minha sociedade, é um forasteiro existencial, embora tenha nascido no mesmo país. Pode ser um cidadão com todos os documentos em ordem, mas fazem-no sentir como um estrangeiro na sua própria terra. O racismo é um vírus que muda facilmente e, em vez de desaparecer, dissimula-se, mas está sempre à espreita.”

E quando de sua ida a Lampedusa, onde chegam os navios vindos da África, trazendo fugitivos de regime de fome e de tortura de alguns países daquele Continente, o Papa Francisco denunciou a globalização da indiferença que nos tirou a capacidade de chorar. Afirmou: “a cultura do bem-estar, que nos leva a pensar em nós mesmos, torna-nos insensíveis aos gritos dos outros, faz-nos viver como se fôssemos bolas de sabão: estas são bonitas, mas não são nada, são pura ilusão do fútil, do provisório. Esta cultura do bem-estar leva à indiferença a respeito dos outros; antes, leva à globalização da indiferença. Habituamo-nos ao sofrimento do outro, e dizemos não nos diz respeito, não nos interessa, não é responsabilidade nossa!”.

E por ocasião dos protestos contra o assassinato de George Floyd, nos EUA, disse: “queridos amigos, não podemos tolerar nem fechar os olhos para qualquer tipo de racismo ou de exclusão e pretender defender a sacralidade de cada vida humana.”  E quando da celebração do Dia Internacional para a eliminação da discriminação racial, o Papa em um tuíte enfatiza que o racismo é um vírus que se transforma facilmente e, em vez de desaparecer, se esconde, mas está sempre à espreita. As manifestações de racismo renovam em nós a vergonha, demonstrando que os progressos da sociedade não estão assegurados de uma vez por todas.

Considerando que o Papa Francisco, na época Cardeal Jorge Bergoglio, coordenava a equipe de redação das conclusões de Aparecida, podemos assumir a perspectiva da Quinta Conferência neste texto em que destacamos a questão do racismo e o Papa Francisco. “A Igreja denuncia a prática da discriminação e do racismo em suas diferentes expressões, pois ofende no mais profundo a dignidade humana criada a “imagem e semelhança de Deus”. Preocupa-nos que poucos afro-americanos cheguem à educação superior, sem a qual se torna mais difícil seu acesso às esferas de decisão na sociedade. Em sua missão de advogada da justiça e dos pobres a Igreja se faz solidária aos afro-americanos nas reivindicações pela defesa de seus territórios, na afirmação de seus direitos, na cidadania, nos projetos próprios de desenvolvimento e consciência de negritude. A Igreja apoia o diálogo entre cultura negra e fé cristã e suas lutas pela justiça social, e incentiva a participação ativa dos afro-americanos nas ações pastorais de nossas Igrejas e do CELAM. A Igreja com sua pregação, vida sacramental e pastoral precisará ajudar para que as feridas culturais injustamente sofridas na história dos afro-americanos, não absorvam, nem paralisem a partir do seu interior, o dinamismo de sua personalidade humana, de sua identidade étnica, de sua memória cultural, de seu desenvolvimento social nos novos cenários que se apresentam” (533).

Por tudo isso, podemos considerar o Papa Francisco em um grande aliado na luta pela superação do racismo e de todas as desigualdades e preconceitos que marcam a sociedade atual.

Manoel Godoy é sacerdote, professor e pesquisador no departamento de Teologia da FAJE

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