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O Nascer, o Natal e a Filosofia

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Elton Vitoriano Ribeiro SJ

O Natal, para a filosofia, pode apresentar-se com uma oportunidade ímpar para pensarmos sobre o nascer. Curiosamente, os filósofos sempre falaram sobre a morte. A morte revela a nossa vulnerabilidade fundamental. Somos seres mortais. Mas, antes de morrer, nascemos. Ora, o que é isso, o nascer? Pensar o nascer é pensar sobre as estruturas fundamentais de nosso existir no mundo. Existimos num certo tempo, num mundo histórico, com um corpo específico, num determinado lugar, com determinadas relações, numa situação social, cultural e histórica específicas. Somos seres encarnados.

Nascer é sair do útero da pessoa que me gerou, minha mãe. Por isso mesmo, nascer é reconhecer minha dependência radical e fundamental. Uma dependência que se prolonga no cuidado que recebo. Cuidado físico e emocional. Cuidado como sendo, na maioria dos casos, primeiramente recebido da própria mãe. Mas que depois é alargado além do útero materno, além do colo materno, para um processo contínuo de nascer. Processo que, psicologicamente, começa na infância, mas se estende por toda a vida, de maneiras diferentes, mas sempre tendo como início o ser gerado e cuidado no útero materno. Assim, nascer é um evento entranhado no corpo feminino. Esta dependência inicial foi muitas vezes subestimada pelos filósofos, com exceção de Hannah Arendt. Sempre preocupados com a autonomia do agente racional, esquecendo que somos, fundamentalmente, animais racionais dependentes.

Nascemos, também, nas nossas relações. Somos seres com os outros no mundo. Nossa identidade, nossa personalidade, nosso caráter, nossos desejos, nossas crenças, nossa linguagem, são sempre relacionais e as adquirimos, constantemente, a partir do nascer. Nascemos em inescapáveis situações e horizontes de interpretação. Situações históricas, sociais, étnicas e geográficas. Nascemos numa classe econômica, numa posição social e, especialmente, dentro de relações sociais de poder. Nascer é ser vulnerável de várias maneiras. Às vezes nascemos com incapacidades que marcam profundamente nossas vidas. Mas, para todos nós, nascer é ser radicalmente contingente.

Um olhar acurado nos ajuda a perceber que nascer não é apenas estar fisicamente saindo do corpo feminino de nossa mãe e entrando no mundo. Nascer é tornar-se carne, ser encarnado. Mas, também, o nascer é carregado de simbologia. Em nossa existência como seres de relações e herdeiros de uma imensa rede tecida de significados, nascemos hermeneutas, ou seja, interpretando. Em cada nascimento de uma nova criança, novas possibilidades nascem, novas liberdades e novas criatividades se constituem. As potencialidades geradas por cada nascimento, por cada criança, possuem a força de ajudar a fazer do mundo histórico um mundo melhor.

Todos nós nascemos de uma mulher, nossa mãe, e nascemos vulneráveis. Temos uma história da qual somos herdeiros. Temos uma vulnerabilidade essencial que nos acompanhará por toda a vida. Nascer é receber uma herança tecida de significados e envolvida pelos outros. Tudo isso, na fragilidade fundamental de nossa carne. Nossa vulnerabilidade é nossa estrutura fundamental. Mas, é uma vulnerabilidade, na maioria das vezes, cuidada pela nossa mãe. Todos temos uma origem maternal. Este processo de cuidado sofre uma mudança ao longo do tempo. Começamos, desde o nascer, a viver um processo psicológico de diferenciação pós-natal. Do corpo de nossa mãe, passamos para suas mãos. Este é o primeiro e essencial relacionamento que, como seres que somos, nos marca profundamente. Claro, existem hoje outras situações que questionam nossas compreensões simplificadas sobre o nascer: casos como barriga de aluguel, adoção, abandono, pais homossexuais e outras realidades contemporâneas dão o que pensar. Mas, em todas as abordagens, surge a pergunta pela figura materna, que histórica e socialmente, possui um lugar fundamental em nosso nascer. Neste processo, do nascer, a figura da mãe é abordada numa rica pluralidade de funções: a ovulação, a gestação, o parto, a amamentação, o cuidar. Ora, se essencialmente todos somos nascidos de uma mulher, todos nascemos sexuados.

Ao nascer recebemos como herança um horizonte de significados e valores, de relações e determinações, de práticas e linguagens. Somos seres encarnados e com necessidades. Habitamos no mundo e estamos em constante relação com tudo e todos. Nossas relações são marcadas e definidas por situações sociais e políticas. Estruturas sociais, distribuição de poder, desigualdades sociais, pobreza, abusos, doenças, miséria, também, tristemente, fazem parte de nossas vidas. Por isso mesmo, várias e instigantes questões éticas surgem desse nascer numa determinada situação. Especialmente, no nosso caso, ou seja, no caso dos humanos que são seres altriciais. Seres altriciais, segundo os etnologistas, são seres que possuem um padrão de crescimento e desenvolvimento incapazes de se moverem por si mesmo logo após o nascimento. Esta vulnerabilidade essencial é fonte de cuidados, mas também, de perigos. Estes somos nós. Somos indeterminados, seres radicalmente abertos, num mundo já constituído, mas modificado constantemente pela cultura.

Nascemos numa cultura e somos seres culturais. Somos criadores de culturas, por isso mesmo, criadores de significados que tornam para nós nossa segunda natureza. É, numa cultura concreta, que vivemos nossa busca ética e política de independência, autonomia e florescimento. Busca encarnada e vivida, ao nascermos, em nossos corpos, nosso gênero, nossa raça, nossa classe social, nossa história, nosso lugar específico nas relações familiares e sociais. É na cultura que encarno e articulo as experiências vividas no passado a fim de orientar minha vida em direção a um futuro grávido de florescimento humano e social.

Finalmente, nascer implica olhar a temporalidade de nossas experiências vividas e, de modo especial, a experiência fundamental de nosso próprio nascimento do corpo de uma mulher. Neste sentido, nascer é receber um dom, o maior de todos, o dom de si mesmo. Recebemos este dom de nossa mãe e de nosso pai, nossos genitores. Somos seres de doação, porque doados a nós mesmos. Ser doado a mim mesmo, no tempo, é a estrutura fundamental que dá o contorno, o quadro de referências, para todas as experiências posteriores. Somos, primeiramente e fundamentalmente, um dom. E este dom torna-se realidade, torna-se carne, no nascer. Nascer, portanto, é o mais fantástico e fundamental evento da existência humana no mundo.

[Resumo da resenha do livro de Alison Stone “Being Born: Birth and Philosophy”(2019) publicada na Revista Horizonte, v.18, n.57, p.1427, dez 2020].

Elton Vitoriano Ribeiro SJ é professor e pesquisador no departamento de Filosofia e reitor da FAJE

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