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O percurso da Teologia na História e sua interlocução com a Igreja

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Geraldo De Mori, SJ

“… quem dera todo o povo do Senhor fosse profeta e que o Senhor pusesse seu Espírito sobre eles” (Nm 11,29)

A teologia surgiu como ciência no mundo cristão no período medieval. Algumas correntes da filosofia grega já haviam utilizado o termo “teologia” para se referir ao discurso sobre Deus ou sobre o divino, tido por elas como princípio, fundamento e razão última de toda a realidade. No mundo judaico e cristão, o discurso teológico com pretensões conceituais, como o elaborado pela filosofia grega, surgiu apenas no contato com a filosofia ou utilizando-se de sua argumentação e método para “provar” e defender a “verdade” da fé ou da revelação. Isso se deu progressivamente. No início, com os “apologetas”, para defender a fé cristã diante de “judeus” e “pagãos”. Em seguida, com os padres que enfrentaram o que consideraram “desvios” na interpretação da fé, como os que vinham das tendências gnósticas que, a partir do século II, atraíram muitos fiéis. No contexto dos concílios dos séculos IV, V, VI, VII e VIII, para aprofundar a verdade tida como mais conforme à autêntica fé da Igreja, oposta à dos assim chamados “hereges”.

O tornar-se ciência do discurso teológico deu-se com a criação das universidades, na Idade Média. Mais que dar as razões para a fé diante dos que a atacavam ou diante de discursos portadores de erros ou desvios, a “sagrada doutrina”, como era então chamada a teologia cristã, era marcada pela necessidade de justificar-se frente aos demais discursos ensinados no âmbito universitário, sobretudo a filosofia. As sínteses que daí surgiram foram capazes de recolher todo o aporte da filosofia antiga, abrindo-se, com o surgimento da razão moderna, às novas questões levantadas pelas ciências e pela filosofia. Na universidade medieval ela era a ciência por excelência, mas, com o advento da razão moderna, que se considera autorreferencial, vários conflitos surgiram, o que, em muitos países, levou à exclusão da teologia como ciência ou ao seu não reconhecimento pelo Estado, que passou a legislar sobre todos os âmbitos da existência.

Ao tornar-se mais acadêmica, a teologia contribuiu para elevar o saber sobre a fé a uma apurada elaboração conceitual. Em regime de cristandade, a separação entre os diversos âmbitos da vida não era tão acentuada, e o que era saber acadêmico sobre a fé tinha também relevância sobre o que era vivido no cotidiano da Igreja e da vida. O advento da modernidade fez com que os saberes acadêmicos conhecessem alto grau de especialização, e a teologia também foi afetada, com o surgimento das várias disciplinas, algumas mais dedicadas ao estudo da Sagrada Escritura, outras aos vários elementos constitutivos dos dogmas cristãos, outras mais à dimensão moral e espiritual da vida cristã, outras ainda a aspectos concretos de administração eclesial. Quem se dedicava à pesquisa, ao ensino e à publicação eram, sobretudo, clérigos. Com o advento da modernidade e a exclusão da teologia como saber acadêmico, ocorrida em muitos países onde tradicionalmente ela era elaborada, a reflexão sobre a fé passou a ser elaborada e ensinada, sobretudo, em instituições eclesiásticas, como conventos e seminários ou, como acontece em boa parte dos países hoje, em instituições acadêmicas confessionais.

Seja na academia, seja nas instituições eclesiásticas ou confessionais, a teologia foi por muito tempo vista como saber de especialistas, distante da vida do fiel comum. Na América Latina, com o método Ver, Julgar, Agir, utilizado não só na elaboração conceitual da reflexão sobre a fé, mas também na pastoral, alguns/mas teólogos/as começaram a falar dos vários tipos de elaboração teológica, valorizando muito a reflexão feita no âmbito popular, a partir dos grupos nos quais a escuta da Palavra de Deus e a escuta do que acontecia na vida eram praticadas. Outros/as faziam a distinção entre os vários níveis de elaboração, uns mais na base da Igreja, outros feitos por agentes de pastoral, outros por teólogos/as profissionais. Nos últimos anos, no Brasil, essa discussão ficou meio em segundo plano com o reconhecimento, pelo Ministério da Educação, dos cursos de teologia, que demandou de muitas instituições um grande empenho para dar-lhe um perfil mais acadêmico, que a habilitasse para o diálogo com as demais disciplinas.

O momento atual que vive a Igreja, desencadeado pelo processo sinodal, demanda, porém, um retorno às práticas acima evocadas, não tanto para separá-las, qualificando cada uma pelo lugar de sua elaboração, a saber, a academia, o meio popular, os/as agentes de pastoral, os/as teólogos/as profissionais, mas para colocá-las em atitude de escuta e enriquecimento mútuos. Algo disso aconteceu no processo sinodal latino-americano e caribenho, no qual, após uma escuta ampla dos vários segmentos do corpo eclesial, foi feita uma primeira síntese, em nível diocesano, depois a nacional e enfim a continental. É interessante o modo como foi elaborado o texto da Síntese continental. De posse das sínteses das regiões nas quais houve os encontros, os/as teólogos/as, pastoralistas e pastores (bispos) que participaram do processo, 16 pessoas, após lerem as sínteses das regiões e de outros organismos que fizeram a etapa continental na América Latina e o Caribe, em clima de oração, partilharam o que lhes parecia ser o resultado de duas escutas fundamentais em toda reflexão teológica: os sinais dos tempos, ou seja, o que foi elaborado no processo de escuta, a Palavra de Deus. Daí surgiram os oito temas a partir dos quais, depois, tendo sempre em conta os textos das sínteses, foi sendo elaborado o texto, numa verdadeira autoria coletiva da teologia.

Algo parecido tem acontecido no Brasil com os teólogos/as que constituem o Instituto Nacional de Pastoral Padre Alberto Antoniazi (INAPAZ), que elabora as análises de conjuntura eclesiais da CNBB. A partir do que lhes demanda o Conselho Permanente da Conferência, os membros do Instituto realizam consultas entre especialistas no tema ou fazem uma escuta nos Regionais a partir dos quais a CNBB está organizada. De posse desse material, iniciam a redação do primeiro esboço do texto, em geral confiada a uma pequena equipe de 2 a 3 pessoas, que depois traz o que produziu ao grupo, que reage, enriquecendo, propondo correções, sugerindo novos conteúdos. O texto apresentado, seja no Conselho Permanente, seja na Assembleia da entidade, é ele também de autoria coletiva, mostrando que é possível refletir teologicamente em perspectiva sinodal. De fato, a sinodalidade é a capacidade de caminhar com pessoas distintas, indo ao seu encontro, colocando-se à sua escuta, buscando o sentir comum, quando se trata de uma decisão a ser tomada, ou de um conteúdo a ser proposto que precisa de esclarecimento.

Na 60ª Assembleia da CNBB, iniciada no dia 19/04/2023, o tema sobre o qual os membros do INAPAZ se debruçaram foi o do impacto da polarização social e política nas comunidades de fé, levando a radicalizações, que utilizam-se da religião e da fé para fins ideológicos, levando os fiéis e as comunidades a posições muitas vezes contrárias à fé. O texto proposto, “As ameaças à comunhão eclesial no contexto de polarização sociopolítica, cultura e religiosa”, é um texto feito em “mutirão”. Ele oferece pistas para o conjunto da Igreja compreender o que está em jogo nas polarizações, e que resposta dar, enquanto cristãos/ã, às ameaças que elas representam para a sociedade e a Igreja.

Geraldo De Mori, SJ é professor e pesquisador do Departamento de Teologia da FAJE e, como integrante do INAPAZ, foi um dos redatores da Análise de Conjuntura apresentada na 60ª Assembleia da CNBB, em 19/04/23.

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