Geraldo Luiz De Mori, SJ
“O quarto anjo despejou sua taça no sol, ao qual foi concedido queimar os seres humanos com fogo” (Ap 16,8)
A sabedoria dos antigos é impressionante. Ainda quando o Brasil era rural e fundamentalmente marcado pelo imaginário religioso e católico, muitas pessoas mais velhas costumavam dizer, “o primeiro mundo acabou em água, o mundo em que vivemos acabará em fogo”. A origem desse imaginário era certamente bíblica, embora outras religiões também tivessem contribuído em sua formação. Ao evocar a água, se pensava no dilúvio, como ele é descrito em Gn 6-9, e a referência ao fogo lembrava trechos do livro do Apocalipse, que recordam os tormentos que viriam pelo fogo, como o do Ap 16,8.
Coincidentemente o Brasil tem vivido em 2024 as provações vindas das águas, como as que caíram abundantemente no Rio Grande do Sul no primeiro semestre, e, nos últimos tempos, as que são provocadas pelo fogo, que tem consumido milhares de hectares de vegetação nativa em grande parte do território nacional. Para uma mentalidade pré-moderna, como a dos antigos, marcada pelo imaginário bíblico, a quase coincidência desses dois fenômenos em 2024 é muitas vezes vista como um sinal de que o fim está próximo, como afirma Jesus nos discursos apocalípticos que pronunciou nos evangelhos de Marcos, Mateus e Lucas, ou como aparece no texto do Apocalipse. Embora muitos vejam esses sinais como avisos de Deus ou mesmo castigos, os meteorologistas mostram que nada mais são do que efeitos da ação humana sobre os elementos que regulam o clima. As mudanças climáticas e as tragédias que têm provocado não vêm de Deus, mas são o resultado de um modelo de relação com o meio ambiente que ameaça a vida na terra.
O mais impressionante é que o que é um bem que pertence a todos, como as águas e o ar de determinado bioma, foi apropriado por poucos, que se arvoram no direito de eliminar aquilo que consideram empecilho para seus negócios, não se importando com os efeitos que pode provocar. No caso do Brasil, o agronegócio, que é visto por aqueles que o promovem como fator de progresso, pois vende commodities que asseguram o superávit da balança comercial do país, não se importa em derrubar matas, atear fogo para plantar soja, cana ou para criar gado, sem nenhuma preocupação com os efeitos de seus empreendimentos para o conjunto do meio ambiente. O que importa é fazer a terra produzir o máximo, supostamente para o país se tornar o grande celeiro do mundo. No entanto, a que preço? Sem árvores e sem os rios que elas protegem, a desregulação do clima vai chegando a pontos de não retorno, sendo vistos pelos que supostamente promovem o progresso como efeitos menores. Quem paga depois é a coletividade inteira.
Algo parecido acontece com os que se dedicam à mineração, outra das commodities que trazem muito dinheiro para movimentar a economia nacional. Pesquisa recente feita por várias universidades do Brasil, revelam que os efeitos do rompimento da barragem de Mariana sobre o litoral do norte do Espírito Santo e sul da Bahia aparecem agora em peixes, tartarugas e até baleias, que começam a reproduzir-se com uma série de anomalias, além de apresentarem alto teor de minerais tóxicos no organismo. Além da perda de vidas e do impacto que provocou sobre todo o bioma do Rio Doce, os efeitos do rompimento da barragem seguem impactando a vida marinha, sem que os que se beneficiaram por décadas com as riquezas exploradas da mineração sequer se coloquem essa questão, preocupando-se, quando muito, em pagar multas indenizatórias paras as vítimas humanas. Mas o ser humano pertence a uma cadeia de viventes, e a morte de rios e mares certamente não ficará impune. Mas quem paga não são os que se beneficiam com os ingressos em dólares que fazem a balança comercial manter-se equilibrada, mas o conjunto da população humana e dos demais seres vivos que foram afetados pelo desastre.
E o mais trágico em tudo isso é que os que fazem de tudo para “deixar a boiada passar” criam uma narrativa que consegue ludibriar os que são afetados por seus crimes. Nunca como no atual momento do desenvolvimento do que tem sido chamado de “capitalismo canibal”, que é o modelo que está em vigor na atualidade no mundo, a política foi tão manipulada pelos senhores das grandes corporações que exploram de modo não sustentável o mundo da vida e os recursos minerais. O crescimento da extrema direita no cenário mundial, com forte impacto também no Brasil, como mostra o atual processo eleitoral do executivo e do legislativo municipal, mostra bem como os poucos dos que detêm grande parte das riquezas produzidas no mundo querem também dominar as mentes dos que se beneficiam das migalhas do que eles deixam cair de suas mesas.
Água e fogo são dois símbolos que de tantas maneiras recordam que não fica impune quem destrói o que está na origem do mundo como meio ambiente, em que tudo está interligado, necessitando ser cuidado para que possa continuar a ser a casa comum de todos, não só da geração atual, mas também das que virão, e que têm o direito de também usufruírem daquilo que o planeta tem para que possam nele viver e ter futuro.
O caráter punitivo associado à água e ao fogo pelos textos bíblicos não pode ser atribuído a um suposto castigo vindo de Deus, como pode parecer ser o caso tanto no episódio do dilúvio quanto nos textos apocalípticos que falam do fogo como punição divina. Esse tipo de compreensão ainda “ingênua” ou “pré-moderna”, presente nas mentes de uma parcela significativa da população brasileira, certamente impede-a de ver as verdadeiras causas das catástrofes que se abatem sobre elas, muitas das quais tidas como “vontade de Deus”, o que, sem dúvida alguma, é uma opinião blasfema contra ele. Quem está destruindo a casa comum é o ser humano, sobretudo naqueles empreendimentos que têm efeitos perversos sobre o meio ambiente. O que fazer diante de uma força tão poderosa, que supostamente tem sido a salvação da economia do país? A resistência, como tem se expressado em várias lutas nos territórios indígenas e quilombolas, ou nas pequenas propriedades que buscam oferecer alimentos de qualidade, é uma das formas de ação. Mas não basta somente resistir. É importante acordar do sono ideológico no qual a sociedade e a cultura do consumo habituaram tantas mentes e corpos paralisados. Talvez não seja mais o tempo de respostas globais, protagonizadas por sujeitos coletivos fortes. Mas tampouco se pode ficar de braços cruzados. É urgente acordar e despertar para a ação.
Um belo texto para uma pausa e uma reflexão nesses dias em que se celebra a exaltação da Santa Cruz talvez possa ajudar: “Desperta, ó tu que dormes, levanta-te dentre os mortos e Cristo resplandecerá sobre ti” (Ef 5,14). O convite ao despertar é feito a todos os que estão dormindo o sono letárgico da ideologia do consumo ou da ideologia dos que acreditam que os crimes que cometem contra o meio ambiente ficarão impunes. É interessante que o convite a despertar se faz a quem jaz entre os mortos, ou seja, viver no sono da ideologia é estar morto. Mas o texto paulino recorda que o inocente crucificado na Sexta-Feira Santa resplandece, e sua luz também pode iluminar quem está na escuridão da morte. Mais do que nunca a humanidade precisa desta luz que brota do Ressuscitado, para que ela possa ajudá-la a sair da morte para a qual não foi criada, pois como imagem e semelhança de Deus, o ser humano é prometido à vida. E a água e o fogo, que trazem a morte, podem também purificar e cauterizar. Oxalá que ao contemplar a Cruz Gloriosa do Cristo, os que se dizem seus seguidores/as ou fiéis, possam se deixar converter, saindo da sombra da morte que impede de ver a realidade, abrindo-se a ações que fazem viver.
Geraldo Luiz De Mori, SJ é professor e pesquisador no departamento de Teologia da FAJE
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