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O ser humano: um intrincado nó de relações

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Frei Sinivaldo S. Tavares, OFM

Existem dimensões que são, na verdade, constitutivas de cada pessoa e de todos os seres humanos. A relacionalidade é uma delas. E isto a despeito de uma compreensão difusa segundo a qual nossos relacionamentos seriam como apêndices colados à nossa individualidade; essa, sim, responsável pela identidade de cada pessoa humana. Imaginamo-nos como um conjunto de individualidades, umas ao lado de outras. Existiríamos, na prática, como indivíduos separados uns dos outros e, como tais, buscaríamos no relacionamento com outros uma solução para debelar os efeitos negativos de uma tal separação. Nesse caso, como uma espécie de ponte, a relação teria a função de impedir a total dispersão e desagregação das várias individualidades.

Na verdade, a relacionalidade constitui uma das dimensões constitutivas da existência humana. De tal sorte que não se pode pensar a existência de cada pessoa fora do contexto de uma relacionalidade prévia e concomitante. Existimos, na verdade, no horizonte de uma relacionalidade que nos precede, não apenas cronologicamente. Somos cada vez mais conscientes de que a vida nos alcança mediante distintas mediações humanas e sociais e, portanto, no bojo de uma trama de relações.

Biograficamente, nos definimos a partir de determinadas relações que revelam quão circunstanciada é nossa existência. Os simples dados autobiográficos, que caracterizam a existência ordinária de cada um e de todos nós, nos permitem inferir o caráter intrinsecamente relacional da nossa existência. Nascemos no ano X, numa determinada localidade Y, numa família Z e, em função disso, assumimos determinados condicionamentos que vão marcar indelevelmente nossa inteira trajetória histórica. Condicionamentos estes que não devem ser entendidos apenas no sentido restritivo, como algo que limita, aprisiona e, portanto, impede-nos de alçar vôo livre. Tais condicionamentos devem ser também entendidos como a condição da possibilidade da vida enquanto tal, escandida nas específicas e pontuais decisões tomadas e atitudes assumidas no curso da própria vida. É, portanto, na exata proporção em que nossa vida se dá como circunstanciada que ela pode eventualmente possibilitar o desabrochar de suas próprias e intrínsecas virtualidades. Na hipótese de que nossa vida se desse na ausência absoluta de todo e qualquer condicionamento, ela também não seria capaz de desenvolver algum tipo de virtualidade. O que dá, em outros termos, consistência à própria vida é propriamente o fato de ser, para todos os efeitos, circunstanciada. Precisamente por ser circunstanciada, é que nossa vida pode revelar-se altamente criativa. Pois, afinal, toda expressão de criatividade nada mais é do que o desfrutar no melhor dos modos de todas as virtualidades de uma determinada e específica realidade que nos é dada de antemão, sem a possibilidade de uma prévia escolha.

É no entrecruzamento, nem sempre fácil de se delimitar, entre destinação e decisão, que se desenrola toda a trama do teatro humano, seja ele uma epopeia ou um drama. Destinação remete-nos à dimensão do já dado, do prévio, do anterior, do experimentar-se como alguém de antemão lançado no burburinho da existência. Decisão, ao contrário, corresponde à dimensão da possibilidade do discernimento, do acolher ou não, em liberdade, tudo o que porventura nos tenha sido dado de antemão. Concebidas assim, destinação e decisão são dimensões recíprocas e auto-implicantes. Uma não se dá sem a outra, pois ambas se reclamam reciprocamente. Por essa razão, aquilo que chamamos de identidade pessoal é fruto de um entrelaçar-se, às vezes jocoso, outras vezes dramático, de destinação e decisão, de condicionamentos e iniciativas, de resgate e novidade, de fidelidade e criatividade.

A fenomenologia da nossa existência comunitária e social também revela a dimensão intrinsecamente interpessoal e relacional da nossa existência. Em última análise, não apenas vivemos, nós convivemos. Viver é, em primeiro lugar, desfrutar da companhia dos outros e das outras, mas é ainda conviver harmoniosamente com todas as demais criaturas. Num nível mais próximo, por ser mais imediato, experimentamos que viver é, fundamentalmente, ser acolhido e reconhecido, cada vez, por aqueles que convivem conosco. Imaginemos, apenas por um instante, o que seria a vida de alguém que, hipoteticamente, não se sentisse reconhecido ou aceito por ninguém. Uma vida assim seria insuportável. Pois a vida se apresenta como um jogo no qual se dão trocas gratuitas. Viver assim é participar de maneira interativa deste jogo do dar e receber. Vivemos na medida em que reconhecemos o outro na sua singularidade e, ao mesmo tempo, sentimo-nos reconhecidos e aceitos pelos outros assim como somos. Toda autêntica relação humana parte necessariamente deste pressuposto. De tal sorte, se torna praticamente impossível qualquer tipo de vida sem o mínimo de cumplicidade. Conviver resulta assim como o fruto de uma rede de cumplicidades que almejam alcançar uma convivência respeitosa e harmoniosa. Há duas imagens que exprimem esta interdependência prévia e, de resto, imprescindível, porque inerente, a toda existência humana: a do rosto e a do nome.

O rosto de uma pessoa é o que melhor exprime sua identidade mais própria. Há quem diga, inclusive, que o rosto é o espelho da alma, no sentido de que tudo aquilo que povoa nosso universo mais íntimo transparece, de alguma forma, em nosso rosto. Todavia, o rosto é expressão privilegiada do nosso estar voltado inteiramente para os outros, como dimensão intrínseca da nossa identidade mais genuína. Não existe possibilidade de contemplarmos diretamente nosso próprio rosto. Só conseguimos fazê-lo através da sua pálida imagem refletida em alguma superfície cristalina ou através de nossos espelhos. Por esta razão, a fenomenologia do rosto revela que o que somos não nos é dado diretamente e de forma acabada, estável, como algo que se encontra diante de nossos próprios olhos, numa total disponibilidade. O que constitui nosso eu mais íntimo nos é dado, ao contrário, no bojo daquela relação primeira, anterior e concomitante, no interior da qual já nos encontramos. Neste sentido, dizer vida significa ao mesmo tempo remeter para as dimensões da proveniência, origem, relação e destinação.

O mesmo acontece com o nome através do qual nos identificamos e, conseqüentemente, nos distinguimos uns dos outros. O nome serve, fundamentalmente, para a nossa identificação enquanto pessoa singular, diferente das demais. No entanto, ele é usado mais pelas outras pessoas do que propriamente por nós mesmos. É a maneira através da qual as outras pessoas se referem a nós e também nos interpelam no bojo de um diálogo. E, assim fazendo, remetem ao que de mais pessoal e próprio existe em cada um. Todavia, o simples fato de uma pessoa referir-se a si mesma de maneira exagerada, usando repetidamente o próprio nome, revelaria traços de uma personalidade doentia, expressão do humano decadente.

Com base no que foi dito acima, não se concebe a busca da própria identidade mediante um processo que exclua de antemão a pessoa humana dessa rede de interrelações. Aqueles elementos ou dimensões que constituem nossa identidade mais própria e, neste sentido, caracterizam cada qual como pessoa diferente das outras, nos é dado no contexto e mediante a relação com os demais. E, assim, o que nomeamos como identidade nada mais é do que nossa diferença específica. E por ser específica, esta diferença constitui o resultado de um confronto sadio de cada pessoa com as demais. Este confronto pressupõe a saída de si na direção dos outros, numa atitude de abertura incondicional. De consequência, todo processo de introspecção direcionado ao conhecimento maior da própria identidade pressupõe necessariamente esta abertura prévia e intrínseca de cada pessoa às demais. Abertura ao outro e introspecção, portanto, nada mais são que dois movimentos de um mesmo processo e, por esta razão, devem ser dialetizados. Privilegiar de modo exacerbado um em detrimento do outro, ou vice-e-versa, nos conduziria a um desequilíbrio incontornável. Importa manter a tensão fecunda entre ambos os pólos, a fim de que, de um lado, a abertura e convivência com os diferentes possam estimular o encontro com as próprias diferenças, e, de outro, o resgate da própria identidade possa fomentar ainda mais a convivência com os demais, no respeito pelas suas respectivas e irredutíveis diferenças.

No âmbito social existem regras semelhantes. Existe, na verdade, uma enorme gama de redes sociais em meio às quais nos encontramos imersos. Interagimos continuamente com inúmeras relações sociais. Somos, de certa forma, fruto das interações sociais. Mas, todavia, interagimos de maneira ativa sobre estas mesmas relações através de nossas decisões e atitudes que, consciente ou inconscientemente, acabam repercutindo de uma forma ou de outra no tecido social.

Na perspectiva cristã, enfim, existimos a partir e no bojo de uma relação constitutiva com o Espírito que se torna mais íntimo nosso que nós mesmos, com o Senhor da história e com o Pai Criador de tudo quanto existe. Somos assim, predestinados pelo Pai, desde todos os tempos, a sermos filhos e filhas, em Jesus Cristo, Palavra eterna do Pai, no vigor e na fecundidade do Espírito. O primeiro capítulo do Gênesis revela que fomos criados pela eficácia da Palavra de Deus. Isso comporta que nossa existência, em última análise, constitui uma interpelação do Deus trino e uno. Começamos a existir no contexto de um diálogo prévio e constitutivo da nossa identidade mais precípua. Fomos criados como potenciais interlocutores: ouvintes da Palavra, na predisposição a compreender seus desígnios e a encarná-los na própria vida. Existimos como criaturas, predispostas, posto que vocacionadas, ao diálogo, ao encontro e à comunhão com a Trindade santa e com todas as criaturas.

Frei Sinivaldo S. Tavares, OFM é professor e pesqusiador no departamento de Teologia da FAJE

 

Foto: Nino Souza Nino, por Pixabay

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