Geraldo De Mori SJ
“Isto é o meu corpo dado por vós. Fazei isto em minha memória” (Lc 22,19)
Uma tradição típica da Igreja Católica, a festa do Corpus Christi, celebrada na quinta-feira depois da festa da Santíssima Trindade, é, por um lado, a expressão de uma profunda intuição teológica, e, por outro lado, a tradução do sentido mais profundo do significado da presença cristã no mundo. É uma cerimônia tipicamente católica, resultado de uma evolução na compreensão da relação entre a igreja e a eucaristia, que precisa ser recordada, para que ao celebrá-la, se resgate seu sentido profundo, também nesse tempo.
O teólogo Henri de Lubac, na obra Corpus mysticum, retraça a história da evolução da relação entre a igreja e a eucaristia no primeiro milênio e na Idade Média. Segundo ele, no primeiro milênio, a igreja e a eucaristia eram denominadas “corpus mysticum”, ou seja, ambas contribuíam para tornar presente o corpo místico de Cristo no mundo. A relação entre elas era de interdependência e fecundação mútua. A igreja, corpo místico, tornava viva, na eucaristia, a presença mística de seu Senhor na vida dos fiéis e, através deles, no mundo. Por sua vez, a eucaristia, corpo místico, gerava a igreja como presença viva de Cristo no seio da história. As controvérsias sobre a eucaristia na Idade Média fizeram com que ela, a partir de um determinado momento, passasse a ser denominada “corpus verum”. Desse debate nasceu a festa do Corpus Christi, e toda uma tradição que, no segundo milênio, vai se afirmar ao redor da adoração eucarística. O Concílio Vaticano II, com a constituição sobre a liturgia (Sacrosanctum Concilium) e a constituição sobre a Igreja (Lumen Gentium), resgata essa relação indissociável que existe entre igreja e eucaristia, afirmando que a igreja faz a eucaristia e a eucaristia faz a igreja.
O período que se seguiu ao Concílio viu florescer uma série de novas abordagens sobre a eucaristia, muitas delas resgatando sua relação com a vida dos fiéis e da igreja, mas também com as situações de sofrimento e injustiças vividas por setores vulneráveis da humanidade. O caráter profético de denúncia e a dimensão transformadora do memorial da ceia do Senhor foram trabalhados em perspectiva teológica e pastoral. Isso lhe conferiu uma perspectiva profundamente performativa, como atestam as celebrações, os hinários litúrgicos, o lugar da eucaristia na vida e na práxis dos que dela participavam.
Aos olhos de certas sensibilidades religiosas, porém, o “mistério” a ser adorado estava sendo “perdido” pela nova forma de se viver a eucaristia. Além do mais, o processo de secularização contribuía para uma perda progressiva do “imaginário” católico, e isso era sentido por muitos como ameaça ao “verdadeiro” significado da eucaristia. Grupos com influência em vários setores eclesiais passaram então a explorar e repaginar formas antigas de celebrar o memorial do Senhor, como o da missa segundo o ritual de Pio V. O tempo de isolamento social, provocado pela pandemia da Covid-19, favoreceu esses grupos, como atesta o movimento “devolvam-nos a missa!”, protagonizado por eles. Por outro lado, grande parte da vida litúrgica, nos momentos mais fortes de isolamento social, só podia ser “assistida”, como nas cerimônias anteriores à reforma litúrgica do Vaticano II. Proliferaram então as missas on-line, celebradas somente pelo padre, como também as adorações on-line. O próprio “Santíssimo” foi exposto indefinidamente por vários canais nas mídias sociais, ou então tornou-se a “força” divina que iria eliminar o vírus, sendo, por isso, levado pelas ruas em diversos bairros e cidades, ou, às vezes, sobrevoando-os.
Mais que opor as duas perspectivas, ou seja, a que articula a formação do corpo eclesial com o mistério do dom da vida Daquele que o constitui, e a que se deixa impactar por esse mistério, escondido nas “espécies”, exibindo-o e adorando-o como o grande “mistério da fé”, talvez hoje seja mais urgente articulá-las. Seguramente, só pode comungar na ceia do Senhor quem comunga na vida dos irmãos e irmãs, como canta um belo hino litúrgico sobre a eucaristia elaborado em nosso país. Isso significa, que a verdadeira festa do Corpus Christi deve traduzir-se em solidariedade, sobretudo para com os que passam fome nesses tempos tão difíceis. Mas também é importante deixar-se impactar pelo mistério “escondido” e exposto no “ostensório”, ou seja, é preciso deixar-se interpelar por ele, não porque nele se encontre algo de mágico ou milagroso, que vá interromper a situação pandêmica na qual vive a humanidade, ou qualquer situação pessoal na qual se encontre o fiel acometido por infortúnios. Mas porque nesse mistério revela-se que o sublime assumiu a abissal humilhação daqueles que são submetidos à servidão, à injustiça, ao sofrimento (Fl 2,7-8), e que somente uma vida capaz de despossuir-se por amor, é igualmente capaz de fazer emergir a vida eucarística no mundo. Só haverá um mundo novo, mais solidário, menos injusto, se formos capazes de viver o que se celebra na eucaristia, ou seja, repartir o que somos e temos para que outros vivam.
Oxalá a celebração de Corpus Christi, já nesse segundo ano de pandemia, que será de novo celebrada de forma menos espetacular, possa ajudar os católicos e católicas a reencontrar o significado profundo da eucaristia. Certamente é importante a adoração, mas somente se ela conduz aquele e aquela que realizam essa ação à verdadeira descoberta do que está nas espécies em ostensão. Não se adora o Senhor para se sentir bem, em paz com a própria consciência. A verdadeira adoração conduz a uma mudança profunda de vida, como o expressa o apelo mais antigo do Deus bíblico: “sede santos como eu o Senhor sou santo!” (Lv 20,7), retomado à luz do mistério crístico (1Pd 1,16). O “venite adoremus!”, expresso nos hinos eucarísticos, é indissociável do “ite, missa est”, com o qual toda liturgia se conclui, que é um convite a que a missa continue na vida de quem dela participou, transformando-a à luz do mistério celebrado, adorado, comungado.
Geraldo Luiz De Mori SJ é professor e pesquisador no departamento de Teologia da FAJE