Marília Murta de Almeida
Clarice Lispector adorava bichos. Seus textos estão cheios bichos – os preferidos são as galinhas e os cavalos, mas nos encontramos também com cachorros, micos, búfalo, quati, fora os bichinhos que avivam o Jardim Botânico e o apartamento da protagonista no famoso conto “Amor”. O cachorro Ulisses, companheiro real da escritora, é o personagem autor do infantil Quase de verdade. Ulisses dita para sua amiga Clarice, latindo, a história quase verdadeira que quer contar. Também no mundo dos infantis, vemos a escritora pedir perdão aos pequenos leitores em A mulher que matou os peixes. Depois de contar que deixou os peixes do filho morrerem por esquecer de alimentá-los, conta diversas histórias de suas relações com bichos, para se defender e mostrar o quanto gostava deles. No conto “O búfalo”, uma mulher vai ao Jardim Zoológico à procura de um bicho que a ajude a despertar o ódio que buscava sentir, o que acaba por encontrar no búfalo. O olhar silencioso trocado entre a mulher e o animal fazem com que ela se desloque do amor insistente que havia em si e consiga sentir o ódio necessário para a libertação de um laço que a machucava.
Sem entrarmos na atraente discussão sobre amor e ódio nas relações humanas, pensemos no búfalo. Ele nada disse, sobre ele nada sabemos. Nem mesmo sabemos se tem sentimentos, ou como se dão os afetos em sua vida. Ele olha silenciosamente para a mulher. Ela se deixa levar pela existência muda e poderosa do búfalo e esse atrativo da diferença que ele representa permite que ela experimente um deslocamento interno, que ela se descentre de si. Os bichos são o nosso outro.
Uma existência outra que povoa o mundo como nós. Que se movimenta, se alimenta, se banha, se reproduz. Uma existência, entretanto, muda, a despeito dos tantos sons que possam fazer. O ditado do cachorro Ulisses para sua amiga Clarice é um sonho humano. Que os bichos pudessem se comunicar conosco para assim sabermos mais sobre eles, sobre como se sentem, o que pensam de nós. Mas se eles tivessem, como nós, a linguagem, não seriam diferentes de nós. O silêncio dos bichos é o que os diferencia dos humanos e faz com que eles sejam, não outros humanos, mas o outro do humano. Em vez de pensar que temos a linguagem, paremos um pouco no fato de que os bichos têm o silêncio.
Conta o primeiro livro da Bíblia que Deus criou os bichos para serem nossa companhia. O primeiro homem, entretanto, não considerou que fossem suficientemente parecidos com ele para de fato o tirarem da solidão; Deus então criou a primeira mulher, essa sim, carne da carne e ossos dos ossos do primeiro homem. O texto bíblico assim apresenta, então, com imensa simplicidade, o panorama das relações humanas. As diferenças entre os humanos sempre se encerram na constatação da semelhança que nos une: somos todos humanos, feitos da mesma carne, filhos do mesmo Deus, e entre nós nos comunicamos pelo poder da linguagem. As semelhanças entre os humanos e os bichos, por outro lado, se encerram na constatação da diferença radical: eles não falam e com eles não podemos nos comunicar diretamente pela linguagem. Quanto ao que nos faz semelhantes ou diferentes de Deus, parece haver um abismo de mistério. Como ele, falamos, e o primeiro homem fala com o Criador que acabara de o criar. Ao falar, contribui com a criação do humano que só se completa com a criação da mulher. Mas não temos o silêncio dos bichos através do qual eles parecem se comunicar com o Criador de outro modo.
Nesse sentido, Clarice Lispector, em Uma aprendizagem ou o livro dos prazeres, fala da liberdade do cão na areia da praia, a liberdade de quem é o “mistério vivo que não se indaga”. O ser humano, ao contrário, segundo a narradora do mesmo livro, é o ser que “se tornou ininteligível por ter feito um dia uma pergunta sobre si mesmo”. Ser o mistério vivo e não se indagar parece ser, para Clarice Lispector, a comunicação direta dos bichos com Deus através do silêncio. Podemos perceber essa ideia na crônica “Hoje nasce um menino”, publicada no Natal de 1971. Depois da bela descrição da cena do nascimento do menino, como um presépio vivo e quente, a escritora nos diz:
O silêncio do Deus grande falava. Era de um agudo suave, constante, sem arestas, todo atravessado por sons horizontais e oblíquos. Milhares de ressonâncias tinham a mesma altura e a mesma intensidade, a mesma ausência de pressa, noite feliz, noite sagrada.
E o destino dos bichos ali se fazia e refazia: o de amar sem saber que amavam. A doçura dos brutos compreendia a inocência dos meninos. E antes dos reis, presenteavam o nascido com o que possuíam: o olhar grande que eles têm e a tepidez do ventre que eles são.
Este menino, que renasce em cada criança nascida iria querer que fôssemos fraternos diante de nossa condição e diante do Deus. O menino iria se tornar homem e falaria.
A nós, portanto, que não temos o silêncio dos bichos, nos resta amar sabendo que amamos, crescer e falar como fez aquele menino. E o que ele nos falou revela o que quer de nós o seu e nosso Pai: que sejamos fraternos. Deus, então, fala conosco através de seu Filho que nasceu entre nós. E parece falar com os bichos através de seu silêncio feito de sons e ressonâncias. Quanto a nós e os bichos, se conseguirmos nos comunicar com eles, talvez teremos descoberto um outro caminho para falar com Deus.
Marília Murta de Almeida é professora e pesquisadora no departamento de Filosofia da FAJE