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O símbolo “dá a pensar” e move a agir

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Moisés viu que a sarça ardia no fogo, mas não se consumia” (Ex 3,2b)

Geraldo De Mori SJ

Há 490 anos, no dia 9 de dezembro de 1531, na colina conhecida como Tepeyac, no México, o índio Juan Diego teve o primeiro encontro com aquela que passou a ser conhecida como Nossa Senhora de Guadalupe, cuja imagem ficou estampada em seu manto, e que é hoje venerada na Basílica que traz esse nome, na cidade do México. Foi esse o lugar escolhido pelo papa Francisco para a Primeira Assembleia Eclesial da América Latina e do Caribe, realizada entre os dias 22 e 28 de novembro. Passados já quase quinze dias da cerimônia de conclusão desse evento inusitado, é importante começar a refletir sobre seu significado. Paul Ricoeur, filósofo francês, em seu estudo sobre a liberdade falível, afirma que o “símbolo dá a pensar”. Por ocasião do início da Assembleia, evocamos os dois símbolos (ícones) sob os quais ela era realizada: Aparecida e Guadalupe. Concluído esse evento, é importante interpretá-lo, mostrando o horizonte para o qual aponta, num ato de recepção, que o torne vivo no seio da Igreja.

Segundo Ricoeur, o símbolo é uma fonte inesgotável de sentido, nunca se deixando apreender totalmente pela linguagem conceitual. Esse excesso de sentido o torna muitas vezes opaco, mas é essa opacidade que torna possível sua interpretação, que, em geral, é plural, podendo inclusive fazer emergir um “conflito de interpretações”. Para evitar a eliminação da interpretação de quem capta diferentemente o símbolo, é importante deixar emergir seus pressupostos, num verdadeiro ato de escuta, que supõe, segundo o “pressuposto” de Inácio de Loyola, estar sempre disposto a “salvar a proposição do outro”. Na recepção criativa do caminho vivido pela Assembleia Eclesial, além desse pressuposto, é necessário voltar-se para os dois símbolos ao redor dos quais ela foi convocada. Para o papa Francisco, a Igreja latino-americana e caribenha ainda não assimilou suficientemente o que foi vivido e proposto em Aparecida. O encontro em Guadalupe deveria, então, levar seus participantes a revisitar a 5ª Conferência do CELAM.

Aparecida é conhecida, sobretudo, pelo binômio “discípulos-missionários”, ou seja, pelo apelo lançado à Igreja a tornar-se discípula e a viver um movimento de saída. Mas Aparecida foi muito mais que esse binômio, pois retomou o convite de Medellín à “conversão pastoral”, que, como recorda Francisco na Evangelii gaudium, deve atingir todas as estruturas da Igreja, num movimento de saída para as periferias existenciais e geográficas. Vários teólogos e teólogas têm visto no magistério e nas posições do Papa um retorno ao Vaticano II, buscando nele novas luzes que tornem possível uma “segunda recepção”, que, do ponto de vista da mudança das estruturas eclesiais, levaria a Igreja a conceber-se de forma sinodal, à luz da eclesiologia do povo de Deus. Segundo alguns intérpretes, no Vaticano I o Papa era o símbolo a partir do qual se devia pensar a Igreja, pois detinha todos os poderes em todas as Igrejas. Com o Vaticano II, a colegialidade fez com que a onipotência pontifícia fosse compartilhada com os bispos, que, para os que ainda identificavam a Igreja com a hierarquia, se tornaram seus representantes junto com o clero. Francisco, ao insistir na “conversão pastoral”, propõe um retorno ainda mais radical ao espírito e à letra do Concílio, que insiste na dignidade de todos os batizados. A realização da Assembleia aponta para isso, pois nela, diferentemente dos sínodos, compostos em sua maioria por bispos, todos os seguimentos do “povo fiel de Deus” estavam representados, com uma presença significativa de leigos e leigas. Sob muitos pontos de vista, viveu-se sob o manto da Virgem de Guadalupe, algo bastante novo, embora já tivesse sido antecipado, pelo menos no Brasil, pela Assembleia dos Organismos do Povo de Deus. Uma nova figura da Igreja poderá brotar daí, e para isso é extremamente importante reler todo o caminho feito antes e durante a Assembleia.

É interessante que os dois ícones sob os quais se realizou a Assembleia sejam femininos e tenham como lugar de nascimento representantes das camadas mais oprimidas das sociedades colonizadas por Espanha e Portugal: os indígenas e os negros. Dizer que a Igreja ainda não recebeu todo o potencial de sentido de Aparecida, que por sua vez reenvia a redescobrir o potencial inexplorado de sentido do Vaticano II, é também lembrar que o cristianismo latino-americano e caribenho, tão marcado pela religiosidade popular, que tem na figura de Maria a principal referência, não só realizou nos ícones de Guadalupe e Aparecida um genial processo de inculturação, mas que ainda não logrou integrar e dar dignidade a seus filhos e filhas de origem indígena e africana. Nesse sentido, os dois ícones são apelo a “pensar mais e a pensar de outro modo”, como também insistia Paul Ricoeur. Mas, para além de pensar, o que certamente a Assembleia deveria fazer, na recepção do processo que levou à sua realização e dos consensos que ela conseguiu realizar, é mover todos os segmentos da Igreja católica ao agir. Em seu excesso de significado, os rostos ameríndio e negro de Maria nos perguntam: o que significa de fato converter-se e crer no evangelho na América Latina e no Caribe hoje?

A opção preferencial pelos pobres, que tanto marcou a primeira recepção do Concílio na América Latina e no Caribe, tem nos ícones das Virgens de Guadalupe e de Aparecida um apelo a pensar e deve mover de novo as novas gerações de cristãos e cristãs ao agir. Mas, além dessa perspectiva, os dois ícones lembram ainda que foi a fé do “povo santo de Deus” que por séculos manteve vivo o cristianismo no continente latino-americano e caribenho. Algo parecido se pode dizer da primeira recepção do Vaticano II na região, que contou com a ação de milhares de lideranças leigas, grande parte delas constituída por mulheres. A figura clerical que ressurgiu e foi promovida nos últimos anos, precisa de novo colocar-se na escola da eclesiologia do povo de Deus. Nela ela vai aprender o que é a caminhada sinodal e como realmente vivenciá-la no cotidiano, numa aventura que, a partir do batismo, torne todos os membros da Igreja irmãos e irmãs num corpo feito de muitos membros, cada um necessário ao conjunto do corpo, e que é movido pelo Espírito, que o habita e o coloca ao serviço do reinado de Deus.

Geraldo De Mori SJ é professor e pesquisador no departamento de Teologia da FAJE

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