Geraldo De Mori, SJ
Bem-aventurados os puros de coração porque verão a Deus” (Mt 5,8)
A palavra “teologia”, procedente do grego (theos = Deus, logos = palavra ou discurso), utilizada pela primeira vez na filosofia por Platão e associada à mitologia, começou a designar desde então o “discurso sobre as coisas de Deus”. Sua aproximação com a mitologia fez com que os primeiros escritores cristãos só o adotassem a partir do século IV, após o Edito de Constantino. Teólogos então eram Paulo e, sobretudo, João, e a teologia se definia pela confissão da fé cristã, ganhando, nos debates trinitários e cristológicos o sentido de “ortodoxia”, conhecimento do mistério trinitário, distinto da “economia”, que designava a “doutrina da salvação”. Entre os monges, o termo ganhou sentido existencial e a “contemplação mística” era considerada como a grau mais elevado da vida mística. Desse período é a célebre sentença de Evágrio, o Pôntico: “se és teólogo, tu rezarás de verdade, e se tu rezas de verdade, tu serás teólogo” [1]. Com o Pseudo Dionísio o termo é totalmente cristianizado, dando origem à famosa distinção entre teologia “catafática”, que afirma aquilo que se pode dizer sobre Deus, e teologia “apofática”, que nega toda tentativa de captar Deus em palavras ou conceitos, donde a necessidade das teologias “mística” e “simbólica” para a articulação dos conteúdos da fé.
A adoção, com a consequente “conversão” do termo “teologia” para falar do discurso sobre Deus no mundo cristão de origem grega, feita nos primeiros sete séculos do cristianismo, foi pouco a pouco acolhida pelo mundo latino, que também hesitou em utilizá-lo, o que se deu somente na assim chamada escolástica tardia da Idade Média. É interessante que Santo Tomás, um dos maiores teólogos católicos, tem uma afirmação parecida com a de Evágrio, pois, segundo ele, a “verdadeira teologia se faz de joelhos”.
Por que recordar em 2023 as origens e o significado do termo “teologia”? Por várias razões. A primeira, e a mais grave, se deve a certo uso “inflacionado” desse termo por grandes (de)formadores/as de opinião que se autoproclamam “teólogos/as” e espalham certa visão da fé cristã que pouco ou quase nada tem a ver com aquele que está em sua origem: Jesus de Nazaré, confessado como Cristo, Senhor e Filho de Deus por seus discípulos/as. E falar de Jesus é falar Daquele que estava no centro de sua vida: o Pai, e do que ele queria para seus filhos/as: o Reino de Deus. E tudo isso ele o fazia movido pelo Espírito Santo. Alguns desses (de)formadores/as, usando com maestria das novas formas de comunicação, dadas pelo ambiente digital, conseguem milhares de “seguidores/as”, recorrendo para isso a discursos com grande apelo afetivo e a símbolos fortes do mundo religioso, como a figura de Maria ou a do Santíssimo Sacramento, no caso dos católicos, e a das Sagradas Escrituras, no caso dos evangélicos neopentecostais.
A segunda razão para “revisitar” a origem e o significado do termo teologia é a identificação, por parte de um bom número de fiéis cristãos/ãs, entre teologia e perda de fé. De fato, difundiu-se entre esses fiéis a ideia de que estudar teologia é deixar de crer. No fundo, nesses grupos, muitas vezes inconscientemente, vigora uma visão fideísta da religião, que muitas vezes se transforma em visão fundamentalista, contrária ao uso da razão. A única coisa que importa é crer, sem se perguntar pelas razões da própria fé .
Nos dois casos, entre os que se autoproclamam teólogos/as e se tornam uma espécie de gurus de uma nova religião, da qual eles mesmos são os fundadores, mesmo se referindo aos grandes símbolos, textos, doutrinas e imaginário do cristianismo, e entre os que temem a teologia por verem nela uma ameaça à própria fé, nega-se aquilo que está na origem do próprio “discursar sobre Deus” ou sobre o ato de crer: a fé. Ambas esquecem que o próprio ato de fé tem seu nascedouro numa comunidade de fé, que, por sua vez, no caso do cristianismo, só existe se se coloca à escuta Daquele que a convoca e reúne, escuta que tem como primeira resposta a adesão e se traduz em oração.
Nesse sentido, a sentença de Evágrio, retomada por Santo Tomás, resume bem o que está na origem de todo discurso que se pretenda teológico. Não existe teologia verdadeira sem oração, seja a oração pessoal de cada pessoa cuja vocação na Igreja é ajudar a pensar a própria fé e o discurso sobre Deus no lugar e no tempo em que vive, seja a oração da comunidade na qual essa mesma pessoa recebeu a fé e dela se alimenta.
Em seu lugar de nascimento e amadurecimento, as comunidades de fé, oração e celebração ou na Igreja institucional, na qual os/as teólogos/as exercem parte de sua missão, como pesquisadores/as, professores/as, formadores/as ou escritores/as, eles/as só podem se dizer teólogos/as se a reflexão que produzem resulta de uma verdadeira busca orante da “palavra” que Deus lhes diz através dessas comunidades ou dessa Igreja. Essa busca é alimentada pela escuta da Palavra referencial para a fé cristã, as Sagradas Escrituras, interpretadas no contexto que que o/a teólogo/a vive, escuta que se aprofunda através das interpretações que a Igreja deu dessa mesma Palavra ao longo dos séculos, sedimentada na doutrina e no magistério da Igreja. Essa escuta fundante é, porém, indissociável de uma segunda escuta, a da realidade na qual o/a teólogo/a vive.
O Papa Francisco propôs, na vigília do Sínodo da Família em 2014, a seguinte oração ao Espírito Santo: pedimos, dizia ele, “o dom da escuta: escuta de Deus, até ouvir com ele o grito do povo; escuta do povo, até respirar nele a vontade a que Deus nos chama”[2]. Nessa dupla escuta se encontra, sem dúvida alguma, o que está na origem e o que deve alimentar toda reflexão teológica: a escuta da vontade divina, que, por sua vez, aponta a direção de toda escuta verdadeira de Deus: a escuta do grito do povo, e, na escuta desse grito do povo, chegar a respirar o que Deus quer para ele. Nesse sentido, toda verdadeira teologia nasce de uma oração que é escuta de Deus, mas essa escuta de Deus é indissociável da escuta do grito do povo, sobretudo dos que necessitam do olhar benevolente e salvífico de Deus, que, na vida de quem faz teologia, se traduz em ação.
Essa inseparabilidade entre escuta de Deus e escuta do povo tem sua origem nas Escrituras, como bem atesta o início mesmo da revelação bíblica do Antigo Testamento, que mostra a experiência de Moisés que, ao se aproximar da sarça ardente não só é chamado a “tirar as sandálias” porque o lugar que pisava era santo, mas que o Deus dos pais havia escutado o clamor de seu povo reduzido à escravidão e enviava Moisés a libertá-lo. A mesma experiência se deu com todos os profetas e sua denúncia do culto prestado a Deus que não se traduzia em acolhida do órfão, da viúva e do estrangeiro. O Deus verdadeiro não se confundia com os ídolos e abominava a injustiça. Jesus também vive da escuta do Pai e da escuta dos sinais que lhe vem do povo ao qual ele buscava servir, curando suas feridas, expulsando seus demônios, acolhendo os que eram excluídos. Essa dupla escuta determinou suas opções que o levaram ao dom maior. Ela também é que deve mover todo/a discípulo/a que se quer fiel e seguidor/a de Jesus.
Geraldo De Mori, SJ é professor e pesquisador no departamento de Teologia da FAJE
[1][1] Evágrio, o Pôntico. Chapitres sur la priêre. Sources Chrétiennes, 589. Paris : Cerf, 2017, p. 275
[2] FRANCISCO, Papa. Discurso do Papa Francisco na vigília de oração preparatória para o sínodo sobre a família. Roma: Libreria Editrice Vaticana, 2014. Disponível: Vigília de Oração preparatória para o Sínodo sobre a Família (4 de outubro de 2014) | Francisco (vatican.va) Acesso: 03/05/2023.