Geraldo De Mori, SJ
A sexta-feira santa é, para a maioria dos cristãos, o dia do grande silêncio, do deixar-se afetar pela dor e morte de Jesus de Nazaré, que sofre a sorte dos malditos, dos que de tantas formas incomodam sistemas, privilégios e certezas. Segundo o cântico do Servo Sofredor, em Isaías 53,3-5, ele “foi desprezado, como o último dos homens, homem de dores, experimentado no sofrimento […]. Entretanto, ele assumiu as nossas fraquezas, e as nossas dores, ele as suportou”. Desde muito cedo os discípulos de Jesus leram a paixão de seu mestre à luz deste cântico, e a liturgia católica da sexta-feira da Paixão também o propõe como chave de interpretação do que aconteceu com o Nazareno. Neste ano, em que as cerimônias litúrgicas são realizadas na ausência quase que total de fiéis, por causa da ameaça do coronavírus, como celebrar o mistério da cruz e da morte de Jesus? Que luz pode brotar do que aconteceu com o Crucificado para iluminar este tempo?
Não por acaso, a sexta-feira santa é chamada de “sexta-feira da paixão”, e o termo paixão tem, nesta expressão, dois sentidos, o de uma dor infinita, imposta a um inocente, com a qual se identificam tantos homens e mulheres também mergulhados em sua própria via crucis, e o de um dom, feito por um amor apaixonado, que entrega a vida em fidelidade a uma vocação-missão, a de ser enviado pelo Pai para fazer advir seu reinado no mundo.
Contemplar o “homem das dores” neste ano de 2020 é um convite à escuta de um pranto que brota de tantas gargantas em tantas cidades de um planeta que faz a experiência única de chorar os mortos cujas vidas foram ceifadas pelo contágio da Covid-19. Mais ainda, não só há choro, mas também temor de ser o próximo a ser contaminado. A dor e o temor unem, talvez pela primeira vez e de modo sincrônico, milhões de pessoas em todas as partes do mundo. Em que a contemplação da paixão de Jesus, nesta sexta-feira santa de 2020, pode iluminar esta humanidade tornada una e solidária na dor e no temor?
A morte sempre provoca temor e pavor. Em todas as culturas e religiões ela deu origem a todo tipo de ritos, mitos, crenças e doutrinas, que buscam exorcizá-la, domesticá-la ou vencê-la. Paulo, no longo capítulo que escreve aos coríntios para defender a ressurreição (1Cor 15), diz que a morte é o “último inimigo” a ser vencido, embora, para quem crê no Cristo, ela não tenha mais nenhum poder. No último século, muitos filósofos fizeram da morte um dos lugares maiores para pensar o sentido da vida. Heidegger, por exemplo, diz que ela é a experiência por excelência a partir da qual dar sentido à existência, enquanto Camus e Sartre, contrariamente, afirmam que ela é a maior ameaça dessa mesma existência. Na teologia, Bultmann diz que quem crê no Cristo já venceu a morte e, Rahner, sustenta que na morte o ser humano alcança sua definitividade.
Para a teologia cristã, o lugar por excelência para pensar a morte é a morte de Jesus. A liturgia, com a cerimônia da paixão, sóbria e solene, e a piedade popular, com as vias-sacras, o sermão das sete palavras e do descendimento, a procissão do “Senhor morto”, mais exuberantes, ajudam a entrar no mistério da iniquidade, desvelado no julgamento e morte de Jesus, e a afetar-se pelo “escondimento de Deus” no caminho de cruz e morte do Nazareno. O Novo Testamento, sóbrio na descrição, capta, nas atitudes e palavras de Jesus o significado profundo que ele dá à própria morte. Por um lado, há um movimento de entrega, descrito na cerimônia da última ceia. Ele toma o pão e o vinho, os abençoa e dá aos discípulos dizendo que aquilo é seu corpo e seu sangue dados por eles. No Getsêmani, esta dimensão ativa de sua entrega parece desaparecer, pois ele sente medo, chega a suar sangue. Em seguida, ao ser preso, deixa-se conduzir e, levado no tribunal, responde ao interrogatório, condenado e torturado, é levado ao patíbulo. Duas das “sete palavras” expressam bem esse duplo movimento: “meu Deus, meu Deus, por que me abandonaste?” (Mt 27,46), “Pai, nas tuas mãos entrego meu espírito” (Lc 23,46).
A primeira dessas duas “palavras” de Jesus na cruz condensa, por um lado, todo terror, obscuridade e solidão que o ser humano experimenta diante da morte. No fundo, em parte, é o que nos torna todos solidários e iguais nesta assinatura de nossa finitude, que é a morte. Por outro lado, a segunda “palavra” aponta para o sentido último do morrer, que, para Jesus, é transformar o ser abandonado pelo Pai em “abandonar-se” em suas mãos. A carta aos hebreus capta isso de forma extraordinária, afirmando que Jesus é o “iniciador da fé, aquele que a levou à perfeição” (Hb,12,2). Em outro texto, a mesma carta diz que ele aprendeu, com “dor e lágrimas”, o que significa ser filho (Hb 5,7-8). No fundo, viveu a radicalidade do que é morrer e, ao experimentar na morte o que é abandonar-se com confiança, realizou plenamente o que significa ter fé, mostrando que por ela se pode vencer a morte. Por isso, Paulo, ao dizer, “onde está, ó morte, tua vitória?” (1Cor 15,55), descobre o significado profundo da fé, que oferece a luz e a força para enfrentar a dor e o medo da morte. Oxalá, ao contemplar Jesus na cruz neste ano, os cristãos redescubram como dar sentido a essa travessia, sobretudo para os que poderão já empreendê-la e morrer.
Geraldo Luiz de Mori é teólogo jesuíta, professor do departamento de Teologia e reitor da Faculdade Jesuíta de Filosofia e Teologia (FAJE)