“Onde está o teu irmão?” (Gn 4,9): A fé cristã diante da violência

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Márcia Eloi Rodrigues

A violência, em suas múltiplas formas, desafia a consciência cristã e interpela a fé diante da dignidade humana. No contexto brasileiro recente, essa tensão se torna dramática em episódios como a megaoperação policial realizada nos complexos da Penha e do Alemão, no Rio de Janeiro, em 28 de outubro de 2025, que resultou na morte de 121 pessoas e abalou profundamente a sociedade brasileira. O episódio reacendeu debates sobre segurança pública, direitos humanos e o papel do Estado no enfrentamento à violência. Enquanto o governo defendeu a ação como necessária ao combate ao crime organizado, diversas organizações civis e líderes religiosos denunciaram a desproporção da ação e a ausência de políticas sociais eficazes. O fato expôs, mais uma vez, a divisão entre os que justificam a violência em nome da ordem e os que clamam por soluções fundadas na justiça e na dignidade humana.

A atitude cristã diante da violência não pode pautar-se pela vingança nem pela indiferença diante da morte, mesmo de quem está envolvido no crime. Como recorda o Papa Francisco, “a violência não encontra sustentação no Evangelho e não constitui o caminho que Jesus nos propõe” (Fratelli Tutti, n. 238). O Evangelho de Jesus Cristo convida à superação da violência pelo amor, pela justiça e pelo perdão. Quando a sociedade naturaliza a morte de qualquer pessoa, perde-se o sentido da dignidade que Deus concedeu a todos. O discípulo de Cristo é chamado a reconhecer no outro — ainda que marcado pelo pecado — um irmão necessitado de conversão e misericórdia. “Onde está o teu irmão?” (Gn 4,9) torna-se, assim, a pergunta divina que ecoa diante de cada corpo caído nas ruas das periferias, recordando-nos que nenhuma vida é descartável.

A resposta cristã à violência deve sempre promover a paz e a justiça restaurativa, não perpetuar o ódio e a exclusão. O verdadeiro combate ao mal não se dá pela multiplicação da força destrutiva, mas pela conversão dos corações e pela construção de estruturas sociais mais justas. Isso exige políticas públicas que enfrentem as causas da criminalidade — pobreza, desigualdade e falta de oportunidades — e um Estado que proteja sem destruir. Seguir Jesus é recusar a celebração da violência e trabalhar para que a justiça floresça com compaixão, pois a verdadeira vitória cristã é a da vida sobre a morte.

O relato de Gn 4,1-16 expressa, de modo paradigmático, o drama da violência humana e a resposta divina que a transcende. O texto bíblico expõe a tentação sempre atual de justificar a morte em nome da ordem. O gesto de Caim, que mata seu irmão Abel, inaugura a história da ruptura fraterna e da tentação de justificar o mal em nome de uma falsa justiça. Caim simboliza a agressão consciente e racionalizada — aquela que se mascara sob o pretexto de corrigir uma injustiça. A Bíblia desmascara essa lógica e afirma que toda força destrutiva contra o irmão é, em última instância, uma afronta a Deus, fonte da vida. O clamor do sangue de Abel (v. 10) ecoa como o grito de todas as vítimas inocentes da história, exigindo de cada geração uma resposta à pergunta: “Onde está o teu irmão?” O sangue de Abel continua a clamar nas periferias, exigindo conversão.

Teologicamente, o relato não apenas denuncia a ruptura fraterna, mas revela o coração misericordioso de Deus, que não abandona nem mesmo o assassino. A condenação divina a Caim não é vingança, mas justiça pedagógica que busca conduzi-lo ao arrependimento. O “sinal de Caim” (v. 15) é, paradoxalmente, um gesto de proteção e compaixão: impede que o ciclo da violência continue e mostra que Deus é o Senhor da vida — também da vida do culpado. Assim, a Escritura ensina que a violência gera mais violência, mas a misericórdia de Deus rompe esse ciclo, oferecendo ao homem a possibilidade de conversão. O olhar divino que acompanha Caim não é o de um juiz implacável, mas o de um Pai que chama à responsabilidade e à redenção.

À luz do Novo Testamento, Abel prefigura Cristo — o justo inocente cujo sangue clama por perdão, não por vingança (Hb 12,24). A Primeira Carta de João retoma esse contraste: “Não sejamos como Caim, que era do maligno e matou o seu irmão” (1Jo 3,12). O caminho cristão é, portanto, o oposto da lógica de Caim: é o caminho do amor que vence o ódio, da reconciliação que desarma o coração e da justiça que se cumpre na misericórdia. Superar a violência é, antes de tudo, um imperativo teológico e espiritual — é responder à voz de Deus que, em cada tempo, continua a perguntar: “Onde está o teu irmão?”. Essa pergunta é mais que um juízo; é um chamado à conversão e à construção de uma humanidade reconciliada, onde cada vida seja reconhecida como dom sagrado do Criador.

O ensinamento de Jesus no Evangelho aprofunda e leva ao extremo essa revelação iniciada no Gênesis. Ao contrário da lógica de Caim, que responde à ofensa com a morte, Cristo ensina o perdão como o único caminho capaz de romper o ciclo da violência. Quando Pedro pergunta: “Senhor, quantas vezes devo perdoar o meu irmão? Até sete vezes?”, Jesus responde: “Não te digo até sete vezes, mas até setenta vezes sete” (Mt 18,21-22). O perdão não é um gesto ocasional, mas uma atitude constante, expressão do amor divino no coração do discípulo. Ao perdoar, o cristão imita o próprio Deus, “misericordioso e compassivo, lento para a ira e rico em bondade” (Sl 103,8). Assim, o Evangelho ensina que a verdadeira vitória sobre a violência não está na retaliação, mas na restauração da comunhão. Perdoar o irmão é refazer o vínculo que Caim rompeu, fazer triunfar a vida onde o pecado semeou a morte e tornar presente no mundo o Reino de Deus — reino de justiça, reconciliação e paz.

Diante da pergunta divina — ‘Onde está o teu irmão?’ — somos chamados a responder com gestos de justiça e compaixão. A fé cristã não se resigna diante da violência, mas a enfrenta com o poder desarmado do amor, crendo que cada vida, mesmo ferida, é reflexo do rosto de Deus.

Márcia Eloi Rodrigues é professora no departamento de Teologia da FAJE

Foto: Iara Fraga / Shutterstock

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