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Os “milagres” da escuta

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Geraldo De Mori, SJ (reflexões a partir da Fase Continental do Sínodo)

A fé vem pelo ouvir, e o ouvir pela Palavra de Deus” (Rm 10,17).

Os estudiosos das mentalidades gostam de comparar civilizações e culturas. A forma como cada uma conhece o mundo é, segundo eles, influenciada pelo lugar que nela ocupam os sentidos. Dentre as comparações propostas existe a que atribui à forma de conhecer grega a primazia da visão e à forma de conhecer judaica a primazia da audição. Esta coluna já abordou esse tema[1], mas retoma-o de novo provocada por uma das dinâmicas do atual processo sinodal na Igreja católica, a da escuta, que, sob muitos pontos de vista, pode ser iluminada pelas contribuições das reflexões desses estudiosos.

Com efeito, desde que iniciou seu pontificado, o Papa Francisco tem promovido uma série de processos na dinâmica pastoral da Igreja e no conjunto de sua estrutura. Eleito, segundo muitos analistas, para realizar uma “reforma na Igreja”, entendida, por sua vez, como reforma da Cúria Romana, o atual sucessor de Pedro tem insistido muito na importância da escuta em todas as instâncias da vida da Igreja, começando pelos sínodos por ele convocados, como o da família, o da juventude, o da Amazônia, todos precedidos por um momento de escuta, em geral animado pelas Conferências dos Bispos de cada país. O método do atual sínodo, sem romper com os anteriores, radicaliza a etapa da escuta, pois propõe uma escuta ainda mais ampla, feita em cada diocese, seguida de uma síntese local e nacional, a partir da qual a Secretaria Geral do Sínodo elaborou o Documento que guia a etapa continental, feita, ela também, de escuta. Por que essa insistência na escuta? Qual seu significado para a Igreja e sua ação no mundo?

É consenso entre a maior parte dos intérpretes do mundo contemporâneo que suas principais dinâmicas são determinadas pelo poder da imagem. Desde os albores da cultura, a imagem tem um papel importante no conhecimento, pois expressa o poder de capturar e traduzir a realidade. No âmbito da arte, a pintura, a arquitetura, a escultura e a arte têxtil captam e expressam a beleza existente no mundo, indicando também seu inverso, a feiura. Os padrões de beleza são distintos nas diferentes culturas, que então criam normas e critérios para estabelecer a verdade do belo e o que lhe é oposto. Em geral, essas normas e critérios são determinados por pressupostos éticos: é belo o que é bom. Embora central para aceder ao conhecimento do mundo dado pelo olhar, a imagem também é objeto de suspeita, como mostra o mito da Medusa, no mundo grego, e, na tradição religiosa do judaísmo, a crítica dos profetas aos ídolos, imagens falsas da divindade, que impediam os fiéis de verem o que acontecia ao redor.

A onipresença da imagem na atual etapa tecnológica em que vive a humanidade, apesar dos enormes benefícios que traz às pessoas, não é isenta de ambiguidades e, certamente, necessita de discernimento. Se por um lado, as tecnologias possibilitam a conexão de todos com todos, desde que possuam acesso à internet e um aparelho para conectar-se, por outro, como no mito da Medusa, produz em muitos a paralisia do olhar, ou, no caso da idolatria, podem manipular o conhecimento da verdadeira realidade, não enxergando o que acontece ao lado. O fenômeno das Fake News, que invade as redes sociais e muitas plataformas de compartilhamento de notícias e informações, é uma das expressões mais contundentes dessa ambiguidade da imagem. Muitas pessoas renunciam a pensar, contentando-se apenas em curtir ou compartilhar uma mensagem ou um vídeo do TikToK, sem se preocupar em saber se o que vê é verdadeiro. Não por acaso, alguns falam da cultura atual como a da “pós-verdade”, ou seja, o que importa é a informação, de preferência numa imagem, mesmo que seja falsa ou falseadora do real.

Ao convocar o Sínodo sobre a sinodalidade e ao insistir na dinâmica da escuta, o Papa Francisco, fiel ao modo de conhecer o mundo do qual nasceu o cristianismo, a saber, o da escuta, quer recordar à Igreja, não só que os que a compõem são chamados a “caminhar juntos”, que é o significado do termo “sínodo”, mas que ela é chamada a testemunhar no mundo aquilo que lhe é mais próprio, a saber, escutar: não só a Palavra divina, como indica o credo mais antigo de Israel: “Escuta, Israel” (Dt 6,4), mas também aqueles que o olhar seduzido pelo ídolo tende a ignorar: a viúva, o órfão, o estrangeiro.

São muitos os entraves à escuta no seio da Igreja. Alguns grupos, provocados pelo apego à própria ideia do que é a verdade da fé, vista como a doutrina, excluem da comunidade de fé os que, segundo eles, não seguem a doutrina, tal qual reza o catecismo. Outros grupos, acreditando que o mais importante é a dimensão espiritual, opõem a salvação da alma, que é a única a ser buscada, às salvações parciais, dadas pelas inúmeras dimensões que ocupam a luta pela vida e a sobrevivência. Outros, enfim, radicalizam a equiparação entre salvação e humanização, identificando a salvação com a luta pela justiça, o serviço aos mais pobres, a defesa do meio ambiente. Muitas outras variantes podem ser aproximadas dessas três perspectivas, que opõem a salvação, vista como fidelidade à doutrina, à salvação, vista como assegurar a bem-aventurança eterna, à salvação, vista como promoção da justiça. Essa oposição impede os que defendem a própria visão de escutarem ou descobrirem na outra visão algo que possa enriquecê-lo. Surgem então muita acusação, desconfiança, falta de diálogo. Nos últimos anos tem se visto no Brasil grupos que acusam os que não pensam como eles de heréticos ou cismáticos. Tudo isso inviabiliza qualquer diálogo e rompe o que a Igreja é em sua essência: comunhão da diversidade de membros e da riqueza que trazem enquanto tais.

Ao colocar a escuta como ponto de partida no sínodo, o Papa quer, por um lado, recordar que a escuta é o lugar nascedouro da fé. Já Paulo, na carta aos romanos, afirmava que a “fé vem pelo ouvir” (Rm 10,17). Toda a Igreja é chamada a se colocar de novo à escuta da Palavra da qual nasce a fé, a Palavra divina. Mas a escuta desta Palavra se dá, por outro lado, em comunidade, e isso supõe a capacidade de escutar o que o outro é e tem a dizer de si, de sua maneira de ver o mundo, de se relacionar com as pessoas, de entender a Palavra divina. Dessa escuta nascem as relações humanas. A centralidade da escuta na Bíblia produz necessariamente a capacidade de acolher o outro, sobretudo aqueles que o olhar paralisado na figura do ídolo era incapaz de ver: o pobre, o indigente, cujos rostos emblemáticos, no Antigo Testamento, eram figurados pela viúva, o órfão e o estrangeiro, e, segundo a parábola do juízo final de Mateus, pelo faminto, o sedento, o estrangeiro, o nu, o prisioneiro e o que está doente (Mt 25,31-46).

Reaprender a arte da escuta, redescobrir a beleza de quem é diferente, ter a capacidade de perceber em cada membro da comunidade um dom, como o que é oferecido no altar, sobre o qual a Igreja dá graças, eis, talvez, o serviço mais importante que a Igreja tem a oferecer hoje ao mundo, para que o mundo, ao ver essa capacidade de escuta e diálogo, diga: “como eles se amam” e se sinta atraído pela beleza da fé cristã.

[1] Ver: DE MORI, G. A escuta como origem da beleza, da bondade e da verdade do mundo, publicado em FAJE Online, Palavra e Presença, em setembro 2021. Disponível: https://faculdadejesuita.edu.br/a-escuta-como-origem-da-beleza-da-bondade-e-da-verdade-do-mundo/

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