Alfredo Sampaio Costa SJ
A pessoa inaciana, quem viver a inacianidade, vai manifestar traços típicos, que também devem ser encontrados nos jesuítas, mas que não se esgotam, de maneira alguma, neles. Estes traços são: ser companheiro(a), sentir-se apaixonado(a) pela missão, buscar a maior glória de Deus, poder conviver com o paradoxo, ter uma experiência de oração muito concreta, caminhar superando etapas, e viver em espírito de discernimento.
1 – Ser companheiro(a) de Jesus
De ordinário, a palavra “companhia” tem sido identificada com algo guerreiro ou de armas (é uma interpretação tardia, em castelhano, e não querida por Inácio). Existe, contudo, um sentido talvez calcado nas línguas germânicas, pelo qual companheiro – e, por conseguinte companhia – tem a ver com o fato de compartilhar o mesmo pão1. Companheiro é “quem come o pão com outro”2. Talvez por essa razão, ao buscar o nome para os incipientes jesuítas, caiu como um anel no dedo o de Companhia de Jesus que, pelo menos nas línguas românicas, podia manter essa conotação tão rica.
Por isso também, Inácio – leigo – procura amigos e compartilha com eles o dinheiro e a comida, nas universidades em que estudou, dando-lhes os Exercícios e convidando-os à solidariedade com os mais necessitados… Fazia ele muitas diligências, já desde o início, para “remediar os pobres” (Autobiografia nº 57). Daí também se compreende porque Inácio sai sempre em busca de companheiros e companheiras com os(as) quais podia compartilhar todas essas experiências. Neste sentido, é interessante considerar como a amizade – como expressão e extensão da relação com Jesus – não levou o leigo Inácio ao relacionamento exclusivo de homens. Suas relações com múltiplas mulheres foram sempre muito óbvias, muito ricas e duradouras3. A personalidade de Inácio e sua sensibilidade e capacidade para o acompanhamento espiritual foram influenciadas seguramente por sua relação ampla e próxima com as mulheres4.
Este contexto de compartilhar o pão está também representado no Reino: “por tanto, quem quiser vir comigo há de contentar-se com imitar-me no comer, no beber e vestir, e assim por diante. Do mesmo modo há de trabalhar comigo” (EE 93). A partir dali, se está modelando o inaciano(a) como “companheiro, companheira” de Jesus.
Quem é inaciano(a) experimentou nos Exercícios que Jesus é central. Não só o conhece, mas chegou – por graça – a sentir como Jesus. Ele foi levado a encarnar-se com sua sensibilidade. Por isto, o centro da vida é o Senhor de quem se experimenta amigo e companheiro. No colóquio da oração, aprendeu a falar com o Senhor: “como um amigo fala com outro” (EE 54). Toda a experiência da Segunda Semana está impregnada deste enamorar-se de Jesus até as últimas conseqüências (Terceira Semana) e de colocar-se em sua companhia; é o comigo das cenas do Reino.
A experiência de ser pecador(a) perdoado(a) dá um matiz específico a este traço: é pecador(a) e, apesar disto, é chamado(a) a ser companheiro(a)… Talvez seja o mais profundo disto: que, precisamente pelo fato de ser pecador(a) perdoado(a), é chamado(a) a “partilhar o pão”, justamente porque, primeiro, com seu pecado, de alguma maneira, traiu. Esta é também a nova maneira de compreender o que é ser jesuíta e, por transposição, o que é ser pessoa inaciana: “pecador perdoado chamado a ser companheiro de Jesus” (CG XXXII, 2)5.
Em Exercícios, a pessoa inaciana aprende a descobrir Jesus na sua Palavra, na Eucaristia e também nos necessitados: “como padece Cristo na humanidade” (EE 195). A contemplação de Emaús (Lc 24,13ss) favorece esta múltipla presença: Jesus como companheiro de caminho, solidário com o desânimo, desentranha sua presença nas Escrituras e, com eles, partilha o pão, manifestando-se a eles no símbolo eucarístico.
Esta experiência faz com que o(a) inaciano(a) busque a companhia da pessoa de Jesus, mas também gerando companhia entre os demais. A espiritualidade leiga inaciana é, possui, como algo essencial, o traço do companheirismo: do partilhar o pão, de doar-se pelos demais: de tornar-se nutrição para outros e outras. A pessoa inaciana, de modo algum, pode ser uma personalidade isolada, de alguma forma tem que ter experiência de vida com outros, por meio das CVX (Comunidades de Vida Cristã), dos voluntariados jesuítas, ou de algum outro tipo de pertença. Neste aspecto, a Congregação Geral XXXIV propõe, como uma das linhas de busca para os próximos anos, o modo de operacionalizar e concretizar esta vinculação dos(as) leigos(as) ao corpo da Companhia6.
2 – O traço da paixão pela missão
Na Companhia, na Parte VII de nossas Constituições7, o critério de que “sendo o bem tanto mais divino quanto mais universal” (Const. 622) torna-se critério de eleição das tarefas apostólicas. Mas isto está inscrito no convite do Reino: “É minha vontade conquistar toda a terra de infiéis” (EE 93); “A minha vontade é conquistar todo o mundo e todos os inimigos” (EE 95). Ante este convite há várias respostas possíveis. O inaciano, a inaciana estarão entre “os que quiserem aspirar a mais e assinalar-se em todo o serviço”, entre os que “farão oblações de maior estima e valor” (EE 97) – quer dizer, de mais entrega e de maior transcendência.
O leigo(a) inaciano(a) ter-se-á deixado forjar no convite do Reino. Aí, as grandes façanhas propostas por esse Companheiro que é Jesus seduzem por si mesmas. A meditação do Reino prepara um dos traços mais característicos da pessoa inaciana: “encarregar-se dos demais”, encarregar-se das obras que solucionem os problemas do que agora chamaríamos “maiorias”, o que agora denominamos de: Paixão pelo Reino. Quem vive a inacianidade capta o bem das maiorias como preocupação entranhada, apesar de ter outras inquietações e trabalhos.
Um princípio claro nas Constituições é fazer obras que atendam às pessoas em sua totalidade – bens espirituais e corporais – (Const. 623). Mas tudo nasce da paixão por levar adiante a missão. Tem-se que ir à parte do mundo “que mais necessitada estiver” (Const. 622) e ali realizar obras “mais duradouras e perpetuamente úteis” (Const. 623). Nas Constituições, este traço se traduz em outro princípio apostólico: a “vicariedade” [em caráter vicário], fazer o que outros até o momento não podem (Const. 623) – ou não querem fazer…, acrescentamos -. A fundação do Colégio Romano foi para a Companhia uma modelagem desta inquietação: formação dos sacerdotes, que nesse momento careciam de Seminários instituídos. Toda a atividade concretizada em “fundar colégio” teve a mesma idéia: gerar instituições que fossem mudando e formando pessoas que incidissem na transformação do mundo.
A pessoa inaciana se apaixona por levar adiante o Reino e, por ele, se dedica a realizar obras, não só porque sejam boas, mas porque tocam o coração da história, realizando ali atividades que a reestruturem e se institucionalizam porque ganham força por si mesmas. Obras, portanto, que modifiquem o modo como está constituído o mundo, para que o Reino aconteça.
A paixão pela missão é também um traço marcado, de maneira especial, pela experiência de ser pecador(a) perdoado(a): o perdão faz com que se experimente que se estava sem vida e, agora, se tem vida!… Isto desperta a paixão pela missão, pois se constata que a grande tarefa que se tem lá fora, no mundo, no Reino, não é impossível, porque já se está vivendo por dentro, na própria vida, na realidade pessoal.
A nível pessoal, o leigo inaciano, a leiga inaciana – a exemplo de Inácio, leigo – trata de conduzir, de uma maneira muito articulada, cada uma das pessoas que se apresenta em sua vida, até a experiência dos EE e a uma profunda conversão. É o que Inácio chamou “a conversa espiritual”, e é o que hoje denominamos “acompanhamento espiritual”.
Alfredo Sampaio Costa SJ é professor e pesquisador no departamento de Teologia da FAJE
Notas
1 Cfr. DELGADO, Feliciano. “Compañia de Jesús. Análisis filológico del término”. Em Manresa, op. Cit., pp. 249-256.
2 Em hebraico, amigo “re’ha”, é aquele com quem se partilha o alimento.
3 RAHNER, Hugo. Ignace de Loyola et les femmes de son temps. 2 vol. Colección Christus. DDB,1964.
4 THIÓ, Santiago. Ignacio, Padre espiritual de mujeres. Em: Manresa, Vol. 66, n.261,1994. Pp. 424.
5 Congregação Geral XXXII, decreto 2,1. Congregação Geral é a máxima autoridade dos jesuítas: é onde se elege, por exemplo, o Geral, que o é por toda a vida, e onde se discutem os temas de maior importância para a Companhia. Em sua história houve unicamente 34.
6 Cfr. Congregação Geral XXXIV, decreto sobre os leigos. Neste decreto, especialmente do número 21 a 25, a Congregação apresenta o desafio que isto representa para a companhia e a urgência de buscar modos de vinculação jurídica de leigos e leigas que vivam a espiritualidade inaciana, e sintam o chamado de uma projeção apostólica. Pp. 300-302.
7 As Constituições (Const.) são a regra fundamental dos jesuítas. Constam de dez partes. De alguma maneira manifestam o processo de incorporação do candidato que quer ser jesuíta: todo o processo de formação até que chegue a fazer parte do corpo – grupo de companheiros unidos para a missão -, o que constitui esse corpo – os votos, a missão – e o modo de se governar.