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Os traços característicos da inacianidade — Terceira parte

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Alfredo Sampaio Costa SJ

5 – Com um tipo de oração específica

O(a) inaciano(a) recebeu um treinamento muito forte em Exercícios, com um tipo de oração que é de petição, mas de petição do fundamental: em torno do Reino, em torno da maior glória de Deus, de um lado e, de outro, uma oração que é toda ela concatenada. Pede-se por onde o Senhor já vem dando… é daí que a última oração – e o que então se desencadeou – é o ponto de partida do que se segue. Quer dizer que os pontos de oração são oferecidos pela oração anterior. Isto dá uma forte contundência à oração do inaciano, da inaciana.

A pessoa inaciana reza, às vezes utilizando a meditação, quer dizer, o exercício da racionalidade, da vontade, da memória – nossa parte mais masculina – porém, muitas vezes, reza utilizando a contemplação, que é o exercício da sensibilidade, do intuitivo, do sensível – nossa parte feminina -. Esta parte chega ao seu cume na “aplicação dos sentidos”: é pôr em prática toda a sensibilidade; é onde Inácio dá à sensibilidade um papel que nunca lhe tinha sido dado na Igreja, e que ainda não se acabou de explorar.

A oração da pessoa inaciana capta a totalidade humana e privilegia o corpo. Adapta o corpo à maneira de obter a graça: move-o, põe-se de pé, de joelhos, atira-se ao chão (EE 76), mas não necessariamente com posturas estáticas, ao contrário, escutando o corpo, movendo-o até que se encontre o que se busca. Ainda não se extraíram todas as possibilidades da introdução do corpo na oração. Tal como está considerado nos Exercícios, mesmo os jejuns e penitências – vítimas de tantos exageros – são um caminho para introduzir o corpo no que está acontecendo (EE 89), contudo não como um caminho de mortificação – esse não é o sentido que propõe Inácio -, mas como meio, para que o corpo participe e haja nele um movimento que permita captar o movimento de Deus. A inclusão adequada do corpo é também o meio que nos torna mais sensíveis à dor de Cristo, quando padecemos em nós mesmos, de alguma maneira, a dor do povo1.

A pessoa inaciana está habituada a uma oração contextualizada. O esquema dos Exercícios é o trilho por onde desliza sua experiência. O itinerário dos Exercícios é a combinação da História da Salvação, apresentada ao modo de Inácio, em articulação com a história da própria conversão: a biografia espiritual2. Isto se converte no caminho básico para conduzir a oração. Este fenômeno se experimenta mais compactado nos Exercícios de mês, mas também é importantíssimo – embora mais diluído – nos Exercícios na Vida Corrente. Ainda mais, estes Exercícios oferecem um aspecto mais historicizante que os compactos, pois que neles se insere a história real3. Certamente os exercícios na Vida Corrente (EVC) têm um aspecto muito mais contextualizado, já que ali a história, tal como a vive o povo de Deus, constitui um ingrediente estratégico da espiritualidade. Tudo isto nos está indicando o jeito da oração da pessoa inaciana: é uma oração que torna a pessoa contemplativa na ação e numa ação que terá repercussão política, porque quer mudar o rosto do mundo.

Além disso, a pessoa inaciana está acostumada a avaliar a oração. Não se concebe, uma oração, propriamente falando, que não traga consigo seu próprio exame. Mais ainda, como veremos adiante, é uma oração – que pelo dinamismo do discernimento – exige o confronto com um acompanhante espiritual, por um lado, mas que também não tem plena validez sem a confirmação subjetiva: quanto cresceu a pessoa com tudo que está vivendo e, sobretudo, a confirmação histórica: quanto do Reino produziu a oração que se vem fazendo.

 

Os Exercícios, além de uma escola de oração, são escola de vida.

Daí é que, para o(a) inaciano(a), os Exercícios, além de serem uma escola de oração, são sobretudo escola de vida. Escola que pode ajudar a inverter o fato de que como nos comportamos na vida nos comportamos na oração, para passar, depois de seu treinamento, à possibilidade de que, como nos comportemos na oração nos podemos comportar na vida. Quer dizer que, se na oração dos Exercícios se aprende a ter um novo padrão de conduta, é possível – com a força da graça – começar a ser uma pessoa nova na vida. Ainda mais, se temos em conta, que a experiência profunda de encontro com Deus, vivida nos Exercícios, modifica o inconsciente e, portanto, torna possível que sejamos realmente pessoas novas4.

 

6 – Uma espiritualidade processual e de requisitos

Apresentado assim tão exigente quanto pode ser o carisma do inaciano(a), poderia parecer que todos(as) tivessem que possuí-lo já, em sua explicitação máxima. É inerente, contudo, da própria inacianidade o fato de se viver tudo em processos paulatinos, por um lado, e por outro que preencham certos requisitos de possibilidades reais e desejos eficazes. Como também é inerente, que o fato de ser pecador(a) não afasta e sim favorece, em consonância com o requisito evangélico de ser pobre e/ou pecador(a). São os pobres e/ou pecadores aqueles que captam a mensagem de Jesus (Mt 11,25), porque são eles seus destinatários por excelência.

O esquema de Exercícios, novamente nos dá a chave do processual. Nas Anotações – que são as diretrizes para dá-los – encontramos o número 18, no qual se trata de pessoas que não podem entrar de cheio nos Exercícios e se estabelecem, então, critérios segundo “a idade, letras e engenho”. Há, por outro lado, pessoas que carecem realmente de desejos; que “só querem chegar até certo grau de contentar sua alma”. Para as pessoas a quem faltaria o que Inácio chama “sujeito”5 (ou porque não podem ou porque não querem ir além), recomenda “dar-lhes alguns destes exercícios leves” (EE 18).

Este critério processual se nota também, claramente, na contemplação do Reino, onde há uma classificação de pessoas que querem se comprometer mais que outras (EE 96-97). A pessoa inaciana estaria entre “aqueles que se querem afeiçoar-se e distinguir-se mais” (EE 97), embora seja desejando desejar estar nessa tal situação: tendo pelo menos “alguns desejos de os sentir”, como se espera na avaliação dos candidatos à Companhia (Exame, Const. 102).

Já fizemos alusão, anteriormente, à escalada pedagógica que Inácio estabelece a respeito dos desejos. Primeiramente atrevendo-se a, pelo menos, “desejar desejar”, em seguida, atrevendo-se a desejar claramente (na meditação do Reino), até chegar – com Bandeiras e Binários – a pedir para “que seja recebido sob sua bandeira” (EE 147). E nisto consiste ter captado a chave da espiritualidade.

O critério de avaliação também está muito marcado nos Exercícios: distinguem-se “as pessoas que vão de pecado mortal em pecado mortal” (EE 314), dos “que caminham de bem a melhor” (EE 315). As regras de discernimento da Segunda Semana, por exemplo, só devem ser dadas uma vez passada a Primeira (EE 9) e só quando a pessoa mostrar que já está madura para recebê-las. Mais ainda, “É vantajoso para o que faz os Exercícios nada saber na Primeira Semana, do que deve fazer na segunda” (EE 11). Dá-se ênfase, ademais, em que não se pode passar para outra semana até ter obtido a graça da semana anterior. Quer dizer que tudo está incluído nos processos espirituais de cada exercitante.

É bem sabido como Inácio reteve o próprio Francisco Xavier, por quase dois anos, antes de que fizesse sua própria experiência dos Exercícios. De algum modo, Xavier não estava maduro para essa experiência fundamental.

Quer dizer que a inacianidade, é um processo que tem requisitos para ser vivida, um caminho aberto que se vai percorrendo por etapas, como foi fazendo Inácio, o leigo peregrino. É uma espiritualidade que envolve a experiência dos Exercícios, o compromisso com a transformação do mundo, a partir de sua ocupação pessoal concreta e formação intelectual constante, para melhor servir. Experiência, compromisso e formação, três palavras que fazem com que seja uma espiritualidade completamente dinâmica, porém processual.

Alfredo Sampaio Costa SJ é professor e pesquisador no departamento de Teologia da FAJE

 

 

Notas

 

1 Cfr. CABARRÚS, Carlos Rafael. Sob a bandeira do Filho, Edições Loyola, São Paulo, Brasil, 1997, p. 241.

 

2 O Pe. Kolvenbach intuiu isto, quando fala do Evangelho segundo Inácio, ao examinar a releitura do Evangelho proposta por ele nos mesmos Exercícios, onde seleciona textos, introduz alguns novos (EE 299) ou suaviza outros (EE 277).

 

3 Veja-se o capítulo “Inserção da história nos Exercícios”. Em: CABARRÚS, Carlos Rafael. Sob a Bandeira do Filho… p. 215.

 

4 Cfr. CABARRÚS, Carlos Rafael. Rezar o próprio sonho. Edições Loyola, São Paulo, 1997, p. 43.

 

5 Sujeito é uma palavra muito inaciana, mas de difícil tradução. Não é apenas “capacidade”, já que precisamente o próprio Inácio se contrapõe a isto (EE 18). Implica também em decisão, ânimo para coisas grandes. Caráter, aptidão e idoneidade, são a maneira como Arzibialde traduz esta palavra. Cfr. ARZUBIALDE, Santiago. Ejercicios Espirituales de S. Ignacio: Historia y análisis. Mensajero-Sal Terrae, Bilbao- Santander 1991, p. 29.

 

 

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