Geraldo De Mori, SJ
“… todo escriba que se torna discípulo do Reino dos céus é como um pai de família, que tira do seu tesouro coisas novas e velhas” (Mt 1352)
A morte, no dia 05/11/2023, aos 88 anos, do filósofo e historiador argentino Enrique Dussel, é um convite à contemplação de um itinerário humano e intelectual ímpar. Nascido em Mendoza, na Argentina, em 1934, e expulso de seu país, em 1975, pela ditadura militar, radicou-se no México, a partir de onde deu continuidade à sua pesquisa e a seus inúmeros escritos no âmbito da filosofia, da história e da teologia, alguns dos quais referência na criação do pensamento latino-americano da libertação. Recordar, por ocasião de sua morte, o caminho por ele trilhado, é não só um dever de memória agradecida, mas um apelo a, com ele, redescobrir o caminho que, partindo do próprio chão, sabe sair de si mesmo em direção do outro, tendo em vista o tecer do nós.
Com efeito, o itinerário intelectual do pensador argentino teve início em seu próprio país, com estudos de filosofia e uma pesquisa de licenciatura sobre o bem comum nos gregos, seguida de um doutorado, na Espanha, também sobre esse tema. Terminado esse percurso passou dois anos em Nazaré, junto a Paul Gauthier, então padre operário, experimentando na pele a pobreza e a exclusão. Em 1961 iniciou novos estudos, em Paris, com uma formação na área da teologia e da história, doutorando-se em história da Igreja sobre os bispos hispano-americanos defensores dos indígenas. Em 1968 regressou a Mendoza, onde iniciou sua carreira acadêmica. Formulou então suas primeiras reflexões sobre a possibilidade de uma filosofia da libertação, estabelecendo, ao longo da vida, diálogos com os outros campos de sua pesquisa: a história e a teologia.
É possível perceber em seu itinerário uma passagem de um pensamento centrado no “si”, para uma reflexão que se volta ao “outro” e culmina num “nós”. De fato, durante seus estudos e nas primeiras publicações, percebe-se nele a influência de Husserl, Heidegger e o primeiro Ricoeur (da hermenêutica dos símbolos), filósofos que herdaram e aprofundaram e tradição da filosofia da subjetividade. A crítica de Levinas às filosofias do “si” o levaram a uma filosofia da alteridade, de caráter ético. Para isso, ele elaborou o conceito de “analética”, que dá maior importância à ética do que às ciências “ônticas” ou ao pensamento “ontológico” da tradição dialética. Ele propôs então uma “filosofia da libertação”, apresentando novas leituras sobre o marxismo, dialogando com as teorias do discurso de Apel e a reflexão sobre a ética, que deram origem, na década de 1970, à obra Por uma ética da libertação latino-americana e, nos anos 1990, à obra Ética da libertação na idade da globalização. Propôs também uma história mundial das eticidades não centradas na tradição grega e europeia, buscando resgatar as contribuições do pensamento africano, asiático e americano, e dialogando criticamente com a reflexão ética da modernidade, como a de I. Kant, C. Taylor, J. Rawls e J. Habermas.
No campo da historiografia, Dussel participou ativamente da criação da Comissão para o Estudo da História da Igreja da América Latina e o Caribe (CEHILA), que propôs uma releitura da história do cristianismo na região a partir do “pobre”, visto como lugar social e hermenêutico, portador de um juízo ético sobre os acontecimentos, possuidor de um rosto plural, como o dos nativos da região, o dos negros, o dos mestiços. Sua reflexão antecipa em muitos aspectos a do pensamento pós e decolonial, que ela também ajudou a aprofundar. Em suas obras de interpretação geral da história, buscou mostrar como a filosofia política inspira a história dos povos. No caso da cultura ocidental, são fundamentais para compreendê-la a centralidade que nela ocupou a filosofia grega, as culturas europeias, o colonialismo e o secularismo, definindo as categorias a partir das quais pensar a verdade, as épocas e a cientificidade da história.
Em teologia, Dussel valorizou o lugar da práxis no ato mesmo de pensar a inteligência da fé. E a práxis valorizada por ele é justamente a que acontece no chão da vida social, política e econômica do mudo dos pobres, justificando a opção preferencial que a Igreja católica fez por eles em sua ação pastoral e no engajamento que delas emanava. Mas a teologia não é somente práxis, ela também é atravessada por uma erótica, que a leva a propor relações mais horizontais entre homens e mulheres e a combater todas as formas de injustiça que foram se acumulando na história da sociedade e da Igreja contra as mulheres. O último elemento proposto pelo filósofo argentino para se pensar em teologia é o pedagógico, que busca elaborar uma pedagogia que leve a fé cristã a promover cada pessoa, mas sobretudo o pobre, não só como sujeito de direitos, mas como um outro que contribui de fato para formar um nós reconciliado.
Este breve sobrevoo sobre os muitos domínios do saber a partir dos quais refletiu e pesquisou Dussel, mostram o lugar que deu ao que se poderia denominar como “chão a partir do qual viveu e pensou a própria existência e seu tempo”. Apesar de inaugurar sua reflexão com um mergulho em referências da tradição filosófica e teológica, deu-se cada vez mais conta de que o lugar para se pensar o real é sempre aquele no qual cada pensador/a vive e tece os fios de sua existência, que por sua vez é tecida nos fios das dinâmicas e heranças da sociedade na qual se encontra. Sem ser “regionalista”, sua reflexão se abre para acolher as contribuições do gênio de cada cultura e tradição da humanidade, sendo, por isso mesmo, continuamente descentrada e reinterrogada, para aprender com os muitos saberes e modos de ser e viver o humano em sua pluralidade.
A morte de qualquer pessoa é um momento de recapitulação de sua vida, que, como que numa espécie de síntese, adquire sua definitividade, dizendo o que ela foi e como será lembrada. Diante de Deus, o critério de julgamento que diz quem é cada um é o do amor. Diante da humanidade, em geral, a questão que se levanta é: o que essa pessoa deixou como legado, ou seja, em que seu agir e pensar contribuiu para tornar o mundo mais humano ou em que ela ajudou a humanidade a avançar? Somente o tempo poderá dizer qual foi o legado ou a contribuição de Dussel para a humanidade. O espaço curto que separa o momento de sua morte das primeiras leituras que se faz de sua obra já permite recolher a atitude que está em sua origem: a da ousadia de pensar a partir do próprio chão, mas sem nenhuma síndrome narcísica, pois o chão em questão é o de alteridades longamente escondidas, massacradas, apagadas, mas que construíram mundos e alimentaram sonhos, grande parte deles longe dos holofotes da grande narrativa. Nesse sentido, fazer memória do pensador argentino é rebelar-se contra os que insistem em repetir mimeticamente o que dizem os que se arvoram em “donos da verdade”. E esse ato é um apelo para que as novas gerações se deixem conduzir por aquilo que brota do próprio chão, estando atentas para não se seduzirem por aquilo que aparentemente reluz, mas nada mais é do que discurso vão, distante da única verdade pela qual vale a pena entregar a vida e a inteligência: a que se descortina no encontro e se tece na construção de um nós reconciliado, plural, capaz de acolher o que vem do outro. Em teologia, essa é a verdade que Deus revela no rosto do Filho pela ação Espírito.