Cláudia Maria Rocha de Oliveira
A Campanha da Fraternidade no Brasil, com o objetivo de promover na Igreja e na sociedade momentos de reflexão e de conversão, coloca em relevo, a cada ano, temáticas importantes. Em 2024, inspirada na Encíclica Fratelli Tutti, a Campanha nos convida à “Fraternidade e amizade social”. Esse convite nos é feito porque temos vivido numa realidade marcada por muitas experiências contrárias à fraternidade. No primeiro capítulo da Encíclica, o Papa Francisco nos chama atenção justamente para “as sombras dum mundo fechado”. Indivíduos fechados, egoístas, não são capazes de construir um mundo aberto, não edificam pontes, querem dominar, são incapazes de acolher. Constroem muros. Olham para os outros como ameaça, como inimigos.
A questão que podemos colocar é, então, a seguinte: diante das “sombras de um mundo fechado”, por que devemos aceitar o convite à conversão? Por que agir e viver em busca de um mundo fraterno no qual a dignidade de cada ser humano possa ser reconhecida e respeitada? Não estaríamos sendo utópicos e românticos por sonhar com uma sociedade na qual as pessoas possam ver umas às outras como amigas? Há quem pense que somos mesmo “inimigos uns dos outros”.
A resposta a essas questões é simples: devemos aceitar o convite à conversão por ele nos apontar para o único caminho capaz de edificar um mundo realmente humano, no qual podemos nos realizar como pessoas. Mas, o que seria esse mundo humano? O que definimos como humanidade? O pensamento cristão se opõe a toda concepção antropológica que pensa o ser humano de um ponto de vista exclusivamente material. Se a matéria fosse a realidade capaz de nos definir em nossa humanidade, seríamos seres movidos pelas nossas paixões e instintos, em busca da satisfação de interesses e necessidades. Justamente assim o capitalismo quer que acreditemos ser.
Para que o mercado funcione é necessário estimular a competição, a busca pela satisfação dos desejos. Quanto maior a competição, mais o outro se apresenta como ameaça, mais isolados nos tornamos. Indivíduos sozinhos e ameaçados são mais vulneráveis e, por isso, facilmente manipulados. Terminamos “comprando” o que querem nos “vender”. Se não podemos “comprar”, somos descartados.
Contudo, a pessoa que, apesar de se pensar como a mais bem informada e “crítica”, estiver submetida à manipulação de outrem, não pode ser considerada livre. A liberdade é um dos valores fundamentais definidor da nossa própria humanidade. Para dizer kantianamente, a liberdade é condição da afirmação da própria dignidade. Logo, o individualismo característico de uma visão antropológica ancorada na matéria não é fiel ao que somos. Não exprime a nossa humanidade, não garante o reconhecimento da dignidade, nem pode tornar o mundo mais humano.
O mundo autenticamente humano não é constituído por indivíduos egoístas e solitários. Governado pelo mercado e por pretensões de dominação, o mundo está doente. Torna-se, então, fundamental uma mudança de rota: uma conversão. O mundo verdadeiramente humano é aquele constituído por pessoas. Como define Jacques Maritain, a pessoa é “um todo aberto e generoso”. Logo, um mundo humano só pode ser aquele construído sobre os pilares da fraternidade e da amizade social.
Aberta e generosa a pessoa pode ser definida, a partir de Boécio, como “substância individual de natureza racional”. O filósofo clássico Aristóteles, ao se colocar o problema da substância, levanta a questão se substância é matéria, unidade de matéria e forma, pura forma, ou ainda se substância é o universal. Aqui, quando nos referimos à pessoa humana como substância individual, nos dirigimos a cada ser humano que, enquanto singularidade, existe concretamente. Nesse caso, podemos dizer que cada pessoa possui uma identidade, que é intransferível. Cada pessoa é única.
Contudo, a pessoa é ainda, segundo a definição de Boécio, uma substância de natureza racional. O que isso quer dizer? Possuir natureza racional significa ser dotado de logos. O termo grego logos está relacionado à noção de discurso, que se vincula à palavra e à capacidade de comunicação, de diálogo, de manifestação. Em consequência, ser pessoa significa, ao mesmo tempo, possuir uma identidade própria e singular, mas também estar em relação, em comunicação. Portanto, ser pessoa implica ser capaz de sair de si, ir ao encontro do outro, manifestar-se e, ao mesmo tempo, acolher as manifestações de outra singularidade que, por ser também única, é diferente e possui a própria voz. Acolhimento e dom são gestos de gratuidade, intimamente articulados, condições indispensáveis para que possamos ser pessoas e viver de modo humano. Apenas por meio da abertura e da generosidade nos humanizamos.
Voltemos, então, à nossa questão: por que diante das “sombras de um mundo fechado” devemos aceitar o convite à conversão? Por que devemos construir um mundo fraterno marcado pela amizade social? A resposta agora é evidente. A conversão é a única opção que temos se queremos viver humanamente. Na relação fraterna com o próximo, e de modo especial com todo aquele que está à margem do caminho, é que podemos ser nós mesmos. O fechamento produz “sombras”, adoece. A abertura permite que a beleza do diferente nos toque e transforme. O reconhecimento da dignidade do outro é condição de possibilidade da afirmação da própria dignidade. Assumir o compromisso de caminhar junto com os outros, sem querer impor a eles nosso modo de ver o mundo, acolhendo suas diferenças, escutando e deixando ecoar as muitas vozes: eis a que somos chamados todos os dias e de modo especial, pela Campanha Fraternidade, neste tempo de Quaresma. A fraternidade e a amizade social são condições para que “as sombras de um mundo fechado” possam ser superadas e para que em seu lugar seja edificado um mundo aberto, pleno de luz e beleza.
Cláudia Maria Rocha de Oliveira é professora e pesquisadora no departamento de Filosofia da FAJE