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Passaporte vacinal, Caridade e Biopolítica

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Elton Vitoriano Ribeiro SJ

No dia primeiro de novembro, os dados sobre a população vacinada no Brasil eram animadores: 74,7% da população tinha recebido ao menos uma dose da vacina (dose única ou primeira dose), 55% da população tinha completado o ciclo vacinal com as duas doses ou com vacinas de dose única e 4,1% da população já tinha recebido uma dose de reforço. Comparado com números de outros países, mesmos os mais ricos ou os que começaram a vacinação antes, os números do Brasil são bastante animadores. Com esses números apresentados, a preocupação com a falta e a escassez da vacina começa a dar lugar a outros temas. Entre tantos assuntos, temas como a obrigatoriedade da vacinação contra a covid-19; a demissão e não-contratação de trabalhadores que não comprovarem terem se vacinado e a obrigatoriedade do passaporte vacinal ou passaporte sanitário ou passaporte ético, os nomes mudam, entram na pauta das discussões éticas das sociedades.

As discussões, como todas as discussões éticas ou de costumes, são sempre muito acaloradas. Todos possuem uma opinião; jornalistas, cientistas, políticos, professores, gente comum. Sendo o assunto biopolítico, como todos somos afetados, é bom que todos tenhamos a nossa opinião, e a possibilidade de expressá-la, garantida. Esse é um princípio importante das sociedades democráticas contemporâneas. Numa perspectiva otimista e democrática, essa seria a forma de criarmos uma grande e abrangente sociedade do diálogo, da comunicação ou da razão comunicativa. Para alguns pensadores, o pano de fundo desta discussão é se a obrigatoriedade da imunização caracteriza uma violação da liberdade de consciência ou uma contrapartida necessária do indivíduo em favor do social. Pessoa e Sociedade, eis, novamente, a eterna discussão filosófica.

A questão do passaporte vacinal é um assunto interessante. Vários governos de países de todo o mundo passaram a exigir, para o ingresso em seus territórios, um documento comprovando a vacinação contra covid-19. Esse documento é uma pré-condição, em vários lugares do Brasil, para o acesso a locais de alta concentração de pessoas como shows, eventos esportivos, congressos, reuniões, bares e restaurantes. Muitas igrejas também estão adotando essa medida. Por um lado, o argumento, segundo os cientistas válido, é que esta é uma medida eficaz para a redução do risco de contágio, dificultando, assim, a temível transmissão comunitária. Por outro lado, uma determinada compreensão do liberalismo social alerta que a liberdade individual, especialmente a liberdade de locomoção, está ameaçada com esse tipo de exigência. A discussão parece estar longe de terminar. Dois olhares filosóficos, contrários, ajudam, não a resolver, mas a ampliar o debate. São eles, os olhares de Giorgio Agamben e de Peter Singer.

O filósofo italiano Giorgio Agamben, numa intervenção no Senado Italiano no dia 7 de outubro, foi contra a obrigatoriedade do passaporte vacinal. Para ele, a obrigatoriedade é jurídica e moralmente muito problemática. Entre os argumentos presentes em sua breve fala, destaca-se o biopolítico. A mudança de uma sociedade disciplinar para uma sociedade do controle, como são as nossas sociedades contemporâneas, exige dispositivos que permitam ao Estado controlar a ação e os movimentos das pessoas. Também, aumenta o controle digital dos comportamentos que são quantificados a partir de algoritmos. Para Agamben, em nome da biossegurança e do controle social, as liberdades individuais estão destinadas a sofrerem uma limitação crescente. Está é uma nova forma de governar? Até que ponto vai este controle? Quem decide os limites? Não corremos o risco de criar cidadãos de primeira e segunda classe? Portanto, a argumentação de Agamben, argumentação biopolítica, é a de que a vigilância social vai se impondo de maneira gradual e crescente em nossa vida cotidiana como se fosse o melhor, o mais conveniente, o necessário.

Por outro lado, o filósofo Peter Singer, professor de Bioética, famoso e controverso por suas posições, apresenta outra argumentação sobre este assunto. No dia 04 de outubro, circulou na internet um breve texto dele intitulado Why vaccination should be compulsory – Por que a vacinação deve ser obrigatória. Nesse texto, fazendo jus à perspectiva utilitarista de um altruísmo eficaz, Singer começa com um exemplo, o da obrigatoriedade do cinto de segurança. Segundo o autor, a legislação sobre a obrigatoriedade do cinto de segurança gerou fortes objeções por ser considerada uma grave violação da liberdade individual. Hoje, essa legislação é considerada uma regra de bom senso porque ela diminuiu, e muito, o número de mortes e lesões graves em acidentes automobilísticos. Diz Singer que hoje ele não se lembra de ouvir ninguém exigindo a liberdade de dirigir sem usar o cinto de segurança. A justificação fundamental que sustenta o argumento da obrigatoriedade do cinto de segurança é que ele protege as pessoas e a sociedade, ao mesmo tempo.

Para argumentar a favor da obrigatoriedade da vacinação contra a covid-19, Singer discute um princípio ético de John Stuart Mill. Para Mill, a única possibilidade de se exercer o poder, por direito, contra a vontade de uma pessoa é para prevenir danos a outros. Apesar de Mill ter uma atitude extremamente otimista em relação à sociedade humana e à argumentação racional, o que não é o nosso caso de indivíduos contemporâneos, seu princípio de “não prejudicar os outros” ainda parece válido para o bom andamento de uma sociedade. Para Singer, pessoas não vacinadas impõem riscos aos outros ao aumentarem, conscientemente, a probabilidade de espalhar a doença sendo contaminadas e contaminando. Essa argumentação, a da proteção coletiva, encontra respaldo nas pesquisas científicas, por exemplo, a do Boletim do Observatório da Covid-19 da FIOCRUZ do dia 29 de outubro.

As boas discussões em filosofia, mais do que eleger um vencedor, ajudam-nos a ampliar nosso entendimento, enriquecer nossas argumentações e gerar novos acordos e consensos. Agamben e Singer, cada uma à sua maneira, nos ajudam nesta ampliação do debate. Mas, como vivemos no cotidiano das escolhas e ações políticas, talvez, a direção apontada pelo Papa Francisco nos ajude a tomar um caminho diante das argumentações anteriores. Numa fala do dia 18 de outubro para a “Campanha para o acesso universal à vacinação” Papa Francisco afirmou: “Vacinar-se é um ato de amor”.

Para Papa Francisco, o amor é também social e político. Por isso, além de defender o acesso à vacinação para todos, em todos os países, não se esquecendo dos mais pobres, a vacinação é um ato político mundial em favor do bem comum. Elas, as vacinas, trazem a esperança de acabarmos com a pandemia, desde que estejam disponíveis para todos. Mas, também, vacinar-se é um modo simples de promover o bem comum, o cuidado com os outros, especialmente, os mais vulneráveis. Na argumentação do Papa Francisco, estes são gestos importantes em prol de uma sociedade mundial que luta contra a pandemia da covid-19 e de todos os efeitos nefastos, econômicos, sociais e humanos, que ele engendra. Portanto, filosoficamente, o caminho pode ser duplo: por um lado manter a discussão em busca do melhor possível; por outro lado, assumir nossa responsabilidade social em prol da superação da pandemia. Neste caso, eu fico do lado do Papa Francisco e, para soar mais plausível aos ouvidos filosóficos, digo: Vacinar-se é um ato de caridade!

Elton Vitoriano Ribeiro SJ é professor e pesquisador no departamento de Filosofia, e reitor da FAJE

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