Marília Murta de Almeida
São Francisco de Assis está presente no imaginário de nossa cultura como o santo protetor dos animais e da natureza. A iconografia e a arte popular o retratam frequentemente em meio aos pássaros ou mesmo com pássaros pousados em seu corpo. Suas palavras mais conhecidas, além da chamada “Oração de São Francisco”, são aquelas que ele usava para denominar os seres todos do mundo: irmão e irmã. As emblemáticas expressões Irmão Sol e Irmã Lua, que estão no título do belíssimo filme de Franco Zeffirelli, nos remetem ao fundo teológico sobre o qual repousa a espiritualidade franciscana: somos todos irmãos, criaturas de Deus, e como irmãos devemos cuidar uns dos outros; e a palavra todos não se refere apenas aos seres humanos, como normalmente a entendemos, mas a todos os seres do universo.
Assim, sob esta perspectiva, podemos entender melhor o Padre Júlio Lacellotti quando, em seu serviço permanente pelas ruas de São Paulo, chama aqueles a quem serve de “irmãos de rua”. Ou quando Pedro Casaldáliga, o bispo de São Félix do Araguaia, decidiu chamar a doença que o vitimou por muitos anos de “irmão Parkinson”. Quando a condição de irmão se estende até mesmo aos seres humanos descartados pela estrutura social e às doenças que nos atingem, vemos o olhar de São Francisco se estender a tudo que existe.
Olhar que acolhe e ama. Amor que, quando referido às situações de dor e sofrimento, nos permite o suporte da esperança e o incremento da capacidade de aceitar aquilo sobre o que não temos controle, além de nos colocar em ação em relação ao que podemos transformar. Entretanto, tal olhar não se dirige apenas à dor, mas também à beleza do mundo. E quando se plenifica, nos permite sentir a extensão toda de um sorriso. É este o efeito do singelo poema de Pedro Casaldáliga, “Vanderléia”, sobre sua amizade com uma irmãzinha de apenas um ano de idade. Leiamos um trecho:
Tengo una amiga
que tiene un año.
Con dos dientes arriba
y dos abajo.
Y una sonrisa
por todo lo ancho.
Va desnuda como un lirio,
por los mosquitos picado.
(…)
Vanderléia se ríe
por todo lo ancho,
y el corazón del Mato Grosso
se esponja con cien mil pájaros.
Vemos nessas linhas as duas grandes vertentes da experiência de São Francisco de Assis, aqui revividas por Pedro, o poeta do Araguaia: o desnudar-se e o canto que louva. Desnudar-se fazendo de si mesmo um ser entre os outros; louvar a beleza do mundo em gratidão ao Criador.
O poema se inicia pela simples declaração de amizade por uma criaturinha que mal começava seu caminho pela vida, com a boca ainda cheia de vazios sem dentes. Todavia, com apenas dois dentes em cima e dois embaixo, Vanderléia ri e seu sorriso se espalha por todo o espaço. Ri com o corpo todo, nua como um lírio, como os lírios do campo. Olhar Vanderléia, para Pedro, é olhar os lírios do campo, como nos pediu Jesus. Escuto assim o chamado de Pedro: olhai a beleza do mundo toda inteira num sorriso de poucos dentes.
No seguimento do poema, vemos a intensificação da potência do sorriso: Vanderléia ri por todo o espaço e o coração do Mato Grosso se espalha em cem mil pássaros. Sorriso, coração, Mato Grosso, pássaros. Imagens com força intensa para nos forçar a alegria do sorriso próprio. A referência ao Mato Grosso nos permite o enraizamento no chão pisado pela pequena Vanderléia, pelo valente Pedro, pelas pessoas todas daquelas terras, para que não nos esqueçamos do barro de que somos feitos.
O sorriso de Vanderléia não é uma abstrata imagem do poeta que imagina um mundo descolado da realidade vivida. É a concretude da vida cuja beleza é percebida pelo poeta místico que louva o mundo, mesmo em meio aos mosquitos que picam. O ato de espalhar-se que se dá do sorriso da menina ao espaço do céu ocupado por cem mil pássaros reflete com delicada precisão o movimento que somos chamados a fazer, de nós mesmos ao mundo inteiro. Não apenas o céu descolado de nós em sua vastidão inatingível. Não apenas a vida na terra fechada em si mesma. Mas sim a vida na terra que atravessa a abertura que nos constitui e que nos permite o voo pela vastidão do céu.
Descentrar-se de si mesmo em direção ao universo que é vasto e livre, mas sem perder-se, num voo cuja liberdade só parece ser possível aos pássaros, é esse o convite que o poeta nos faz. O coração do Mato Grosso é o coração de Pedro e pode ser o nosso. Com os pés descalços na terra vermelha do chão das margens do Araguaia e o coração ligado aos irmãos e às irmãs com quem se encontrava, Pedro Casaldáliga fazia o voo dos pássaros com a força da palavra poética e da fé que o acompanhava.
Marília Murta de Almeida é professora e pesquisadora no departamento de Filosofia da FAJE