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Pequenezas do poeta brincante

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Marília Murta de Almeida

A vida não tem sido fácil. Tensões políticas quase por explodir na incapacidade de diálogo. Catástrofes ambientais a nos mostrar didaticamente as consequências do que fazemos. Crianças e adolescentes desaprendendo a arte de se relacionar. Ciências se perdendo em números de produtividade. Artistas se equilibrando sob o risco da desorientação virtual. Ódio e desamor cercando os que clamam por cuidado.

Poderia seguir por muitas linhas mais com imagens do que nos machuca na atualidade. Mas fui atravessada pelo lirismo do poeta brincante, Mário Quintana:

O POEMA

Uma formiguinha atravessa, em diagonal, a página ainda em branco. Mas ele, aquela noite, não escreveu nada. Para quê? Se por ali já havia passado o frêmito e o mistério da vida…

 

O corpo simples e mínimo da formiga sobre a página em branco é o que bastou ao poeta para não precisar mais escrever. A escrita da poesia seria o ato humano de fazer aparecer o frêmito e o mistério da vida, já trazidos ao mundo pelo simples caminhar do inseto capturado pelo olhar do poeta. Mas só sabemos disso porque ele escreveu. Num jogo paradoxal, o poeta escreve sobre um outro poeta que não precisa escrever porque já vislumbrou o que buscava ao escrever.

Ao imaginar um poeta que não precisa escrever, Quintana escreve. Ao escrever, nos oferece o que o poeta imaginado viu. E o que um viu e o outro escreveu é o vibrar dessa corda íntima que nos põe em alerta de vida. Um pulso íntimo e secreto que nos revela que a vida é mais do que o que vemos imediatamente. E não se trata da suposição mágica de que um sentido secreto de tudo o que parece sem sentido será revelado e assim nos confortar. Não. Se trata apenas de um sussurro capaz de nos deixar alertas na certeza de que não vemos tudo e sabemos muito pouco. O frêmito e o mistério da vida nos atravessam com a lentidão da formiga atravessando a página – ou a tela – e nos põem em um estado de alerta que é como uma intuição que nos aponta para um susto que bem poderia ser como a surpresa prevista pelo Quintana:

A GRANDE SURPRESA

Mas que susto não irão levar essas velhas carolas se Deus existe mesmo…

 

A existência de Deus não cabe na vida previsível e toda regrada que a imagem das velhas carolas nos desperta. O poeta que morreu velhinho não se deixou aprisionar por previsões e regras. Aberto às pequenas surpresas da vida, tal como ela é, imaginou para nós a grande surpresa do encontro com um Deus verdadeiramente existente. Um Deus vivo que certamente nos desorientaria em relação a qualquer tipo de previsão que tivéssemos feito dele, exatamente porque é, ele mesmo, o portador do frêmito e do mistério da vida e a origem do poder de nos atravessar que as coisas do mundo possuem.

Se Deus existe mesmo, é ele que nos desconcerta no caminho da formiga pela página, na alegria do canto inesperado do pássaro, no salto desconjuntado da gata no cio, na ternura do olhar da cachorra que nos procura pela janela, na lua cheia que nasce laranja e grande quando nem pensávamos nela, no sorriso de uma menininha na janela de um carro, na mão estendida que toca e acolhe ao pedir.

Também aqui poderia seguir por inúmeras linhas com imagens de pequenezas que têm o poder de desconcertar e fazer vibrar a corda secreta que nos põe em estado de alerta de vida. Mas a lista de exemplos se completa na compreensão oferecida pelo poeta de que é Deus mesmo que nos assusta e faz tremer, nos desconcerta e desorienta.

A repetição se faz necessária para que possamos entender: se Deus existir mesmo, o encontro com ele será um susto capaz de fazer cair todas as grandes construções bem acabadas e bem utilizadas por todo um sistema de eficácia, produtividade e bons costumes. Será como sentir mãos bem grandes nos balançando pelos ombros a dizer: vibra com o frêmito da vida, treme com o mistério que ela carrega.

Bagunçada pelo vibrar insistente da corda íntima, não me esqueço de que a vida não tem sido fácil e não me iludo na esperança de que a corda vibrante possa facilitar as coisas. Mas sinto a vibração como o descanso na rede à beira de um rio caudaloso e silencioso, apesar do susto e do medo que o acompanha. Atravessada pelo lirismo do poeta que brinca, brinco e danço com ele, como em sua Canção da primavera:

Dancemos todos, dancemos,

Amadas, Mortos, Amigos,

Dancemos todos até

Não mais saber-se o motivo...

 

Sem mais saber o motivo, sem mais lembrar do que foi que atravessou em mim o cansaço da vida que não está fácil, volto para ela descansada e reverente.

Marília Murta de Almeida é professora e pesquisadora no departamento de Filosofia e Teologia da FAJE

Foto: Shutterstock

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