Pertença, interação e cuidado. Por uma reinvenção da fraternidade!

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Sinivaldo S. Tavares, OFM

Fraternidade e ecologia integral” é o tema que a Igreja no Brasil elegeu para inspirar a celebração da Campanha da Fraternidade de 2025. Trata-se de uma feliz escolha. Na verdade, poucos temas gozam, nos dias de hoje, de tamanha relevância. A consciência de que tudo está interligado traz consigo o urgente desafio de reinventar a fraternidade, recriando relações de pertença, interação e cuidado não apenas entre nós, humanos, mas também com o conjunto das criaturas. E estas novas relações que queremos instaurar entre todos os seres vivos é condição da tão almejada defesa da vida. Neste sentido, reconhecemos a incumbência oferecida pelo Criador, de nos sentirmos parte da inteira criação e de interagirmos com as criaturas, numa singela, porém, imprescindível atitude de cuidado. Para tanto, queremos aproveitar esse tempo propício da quaresma para nos exercitar na conversão evangélica que, como nos lembra o papa Francisco, na Laudato Si, necessita incorporar em seu processo a conversão ecológica.

Somos, não raras vezes, reféns de atitudes e mentalidades que pressupõem fraternidade como experiência restrita a nós seres humanos. E até admitimos falar em defesa da vida em geral, mas salientando a incontestável superioridade dos humanos em relação às demais criaturas. E isso porque ainda somos fortemente marcados pelo paradigma hegemônico da colonial modernidade: antropocêntrico, mecanicista e racionalista.

Do ponto de vista do direito privado, o antropocentrismo moderno se revela na oficialização jurídica da existência de “pessoas” e “coisas”: expressão da cosmovisão moderna que separa e contrapõe “sujeitos” a “objetos”. Segundo essa configuração epistemológica, sujeito mesmo é, a rigor, apenas o próprio indivíduo considerado em si mesmo. Todo o resto é sistematicamente reduzido à condição de mero “objeto”. Essa é a fatalidade do nosso paradigma civilizacional moderno. Segundo esse pressuposto, tão somente o ser humano existe “por amor a si mesmo” (Kant). Todo o restante existe apenas por causa dele e em função dele. O sentido das demais “coisas” reside propriamente no seu estar à disposição do ser humano. Esse antropocentrismo moderno acaba, portanto, produzindo uma situação na qual a natureza resulta sem alma e os seres humanos, meros sujeitos incorpóreos.

O saber simplificador e mutilador, típico da colonial modernidade ocidental, opera fundamentalmente ordenando os objetos de seu conhecimento e, ao mesmo tempo, eliminando toda sorte de “suposta” desordem. Ele se revela, portanto, intrinsecamente excludente no seu modo de conhecer. A conjunção preferida pelo saber simplificador é ou: ou isso ou aquilo. A rigor, não se trata de uma conjunção, mas, para todos os efeitos, de uma disjunção. O pensar simplificador ou disciplinar opera ou a disjunção ou a redução. Ou ele separa o que está intrinsecamente ligado (disjunção) ou ele unifica o que é diverso, reduzindo o diferente à monotonia imperativa do mesmo (redução).

Esse saber disciplinar operou uma disjunção entre “ciências humanas e sociais” e “ciências naturais”.  Sancionou-se, assim, a separação entre a existência humana e a história, de um lado, e, de outro, o mundo orgânico e natural. A fé cristã passou a se ocupar quase exclusivamente da existência humana e da história da humanidade. E, por sua vez, a ciência moderna se sentiu livre e desimpedida para realizar suas pesquisas e elaborar suas teorias acerca do mundo gozando de uma autonomia quase absoluta. E bem no meio desse processo, encontra-se o ser humano em uma condição paradoxal: por um lado, ele é considerado ápice da criação, todavia, por outro, é proposto como anel, porém, fora da rica e complexa teia das criaturas.

Cresce cada vez mais, no entanto, em nosso meio a consciência de pertencermos, as criaturas todas, à “comunidade de vida”. É ilusão nossa acreditar que as distintas singularidades próprias das criaturas na sua complexidade são tuteladas mediante cortes dicotômicos e assépticas vivisseções cirúrgicas. Qual teia de relações, o real é extremamente complexo. Particularmente densa é a complexidade em todos os organismos vivos. E o planeta Terra se revela sempre mais como um grande organismo vivo. As distintas singularidades emergem mais nitidamente no bojo das intrínsecas reciprocidades que compõem essa teia da vida. No caso específico do ser humano, sua peculiar singularidade emergirá, portanto, na medida em que o inserirmos na sua comunidade de vida. Nesse sentido, a autêntica tutela dos direitos fundamentais da pessoa humana pressupõe um cuidado especial para que também sejam salvaguardados os direitos da Humanidade e também os direitos da Terra e de sua comunidade de vida. Convém hoje mais do que nunca salientar a reciprocidade entre a tutela da dignidade humana e a defesa da dignidade da Terra e, portanto, a mútua implicação entre ambas. Toda vez que se ferem os direitos das demais criaturas e do planeta como um todo, acaba-se desrespeitando os direitos da pessoa humana. A natureza, entendida como o conjunto de todas as criaturas, deve ser protegida pelo que ela é e não enquanto eventual potencial à disposição do ser humano. O planeta deve ser, portanto, salvaguardado em nome de uma dignidade que, para todos os efeitos, lhe é própria.

O conceito de “comunidade de vida” foi proposto pela “Carta da Terra” que o emprega com grande ênfase ao se referir às relações existentes entre as várias formas de vida no Planeta. Com isso não se quer anular as diferenças existentes entre elas; mas sim frisar que as distintas singularidades emergem justamente no bojo das inter-relações existentes entre todos os seres. Existe um parentesco com toda a vida, expresso na interdependência entre todos os seres, que se encontra na base da formulação do termo “comunidade de vida”. Pois como lemos na carta da Terra: “A humanidade é parte de um vasto universo em evolução. A Terra, nosso lar, é viva como uma comunidade de vida incomparável” (Preâmbulo). Por essa razão, salientamos a peculiar relevância da “Carta da Terra” na medida em que revela uma compreensão alternativa do direito como articulação entre direitos humanos, direitos sociais, direitos ecológicos e direitos da Terra, Planeta vivo.

Os sentimentos de pertença, interação e cuidado são, para todos os efeitos, condições básicas para a experiência da fraternidade. E, enquanto tais, já se faziam presentes nos textos fontais de nossa tradição de fé quando, por exemplo, segundo a legislação vétero-testamentária, os dias e anos sabáticos deviam valer também para os animais e para a própria terra. Os textos de Lv 25 e 26 prescrevem o “sábado da terra”; e os textos de Ex 23 e de Lv 25 recomendam que, durante o ano sabático, se deixe a terra inculta para propiciar o direito da respiga aos pobres e para que a própria terra descanse de sua fadiga. Todavia, o texto mais expressivo desta consciência é a ameaça divina de que o povo escolhido será entregue ao cativeiro da Babilônia até que a terra – a terra de Deus – tenha desfrutado todos os seus sábados (cf. 2Cr 36,21).

Ao longo desta quaresma de 2025, inspirados pelo tema da campanha da fraternidade, somos particularmente interpelados a recriar relações que antecipem de alguma forma a imagem bíblica do paraíso terrenal. Na narrativa de Gn 2,4b-25, por exemplo, afloram relações de pertença, de interação e de cuidado como constitutivas do ato criador de Deus. E tudo é dito metaforicamente. O relato inicia falando de uma dupla carência, responsável pelo caráter inóspito e desértico da terra: a falta de alguém que cuide/cultive da terra e a carência de chuvas que a tornem fértil. O ser humano “cultivador/cuidador” (Adam) é modelado pelo Criador a partir da própria “terra cultivável” (adamah). É, de fato, essa experiência de íntima pertença que constitui o ser humano o cuidador/cultivador da terra, por meio de distintas interações. Nessa narrativa, o Criador aparece como aquele artesão cuidadoso que plasma o ser humano do próprio barro da terra para que ele seja seu cultivador/cuidador. Porque feito do barro da terra, o ser humano é chamado a ser o cultivador da terra. Pertença, interação e cuidado, portanto, constituem simultaneamente a condição mesma de possibilidade da tão urgente e imprescindível reinvenção da fraternidade.

Sinivaldo S. Tavares, OFM é professor e pesquisador no departamento de Teologia da FAJE

Imagem: Shutterstock

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