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Pessimismo esperançado

Geraldo De Mori SJ

Em esperança, creu contra a esperança” (Rm 4,18)

No dia 29 de abril de 2021 o Brasil alcançou a triste marca de 400 mil mortos pela pandemia do novo Coronavírus. Durante quase todo aquele mês o país tinha se tornado o epicentro mundial dos contágios e mortes pela Covid-19, sendo depois ultrapassado pela Índia. Nem nos piores pesadelos os brasileiros pensávamos que isso pudesse acontecer. O ufanismo que nos caracteriza, nos faz sempre desejar brilhar, ser o centro das atenções e elogios, da autoglorificação por nossos feitos, nosso “jeito” de ser e viver. No entanto, o “sucesso” de nosso fracasso, expresso por esses números, de muitas maneiras agride nosso “orgulho nacional”. E não só os assustadores números de mortos nos envergonham, mas também o apoio que a política que está em sua origem ainda goza em grupos importantes do país, muitos deles se dizendo cristãos e até mesmo católicos. O que aconteceu com o Brasil? Ainda existimos enquanto nação? E nosso ser cristãos? O que a teologia, enquanto discurso sobre o falar e agir de Deus no mundo, nos diz sobre isso?

A teologia cristã, e a Palavra que está em sua origem, que é autocomunicação salvífica de Deus, tem várias funções na vida dos que creem no Deus revelado no Verbo feito carne. Em primeiro lugar, ela tem uma função rememorativa, ou seja, ela reenvia, os que dizem crer em Deus, a seus feitos na história de seu povo e na história de Jesus de Nazaré. Esse retorno à memória não é somente contemplação de um passado glorioso, no qual Deus realizou suas gestas maravilhosas, que já não mais acontecem no hoje de quem as recorda. Esse passado deve suscitar, em quem faz o exercício da rememoração, um olhar que os leve a descobrir em sua biografia o agir salvífico de Deus. A memória de Deus se torna então memória de sua presença na existência de quem revisita os feitos do agir divino no mundo, na história da salvação e na própria história. A segunda função da teologia é a profecia, ou seja, o discernimento, em meio aos conflitos da história, de como Deus continua a passar por ela. Para isso, a palavra da teologia tem que estar atenta ao que acontece, ou seja, “às alegrias e esperanças, às dores e angústias” dos homens e mulheres de cada tempo e lugar. A profecia torna-se, por isso, denúncia e anúncio. Por um lado, ela deve desmascarar os discursos e as práticas que, mesmo utilizando-se do nome de Deus, ferem a dignidade daqueles que são sua “imagem e semelhança”, sobretudo os mais vulneráveis. Por outro lado, ela aponta o justo caminho a seguir em fidelidade ao Deus da revelação. A terceira função da teologia, de caráter mais sapiencial e místico, é um convite ao silêncio e ao aprendizado do padecimento. De fato, os sábios do Antigo Testamento e grande parte dos discursos de Jesus no Novo Testamento são um convite à descoberta de uma ação de Deus que extrapola nossas medidas e juízos. Deus agiu na história e ele continua nela atuando, mas, muitas vezes, aparentemente em contradição com o que julgamos ser seu modo de agir, a saber numa espécie de “loucura”, que provoca “escândalo”, mas que é “mais sábia do que a sabedoria humana” (1Cor 1,25).

Contemplando a tragédia brasileira e tentando nela exercer esse tríplice olhar, deveríamos, inicialmente, ser capazes de não reduzir tudo à catástrofe. Temos muitas vezes a tendência a uma espécie de autocomplacência narcísica, que é o outro lado da moeda de nosso ufanismo. Ao mesmo tempo em que nos comprazemos com nossa autoproclamada genialidade, tendemos a um autodesprezo, desvalorizando tudo o que é nacional, ou tendo para com o autóctone somente uma relação de domínio e exploração. O exercício da memória, a qual nos convida o “dar as razões de nossa esperança” (1Pd 3,15), deveria nos tornar capazes de “bendizer” e “dar graças”, conforme nos convida cada eucaristia que celebramos. Muita gente acha que o ritual de que participa é algo muito intimista, que as faz receber o Corpo de Cristo e as alimenta em sua vida de fé. Mas a verdadeira eucaristia deveria tornar capaz, quem dela participa, de realizar os mesmos gestos que nela são evocados: tomar o pão, abençoar, dar graças e partir. Celebrar a eucaristia, nesse tempo pelo qual passa nosso país, deveria nos habilitar a tomar sua história, descobrindo nela motivos para “bendizer e dar graças”, ou seja, mais que ficarmos contemplando nossa ferida narcísica, com ufanismos ou autodepreciação, necessitamos aprender a “abençoar e a agradecer”, para então “repartir” e “dar”. O exercício de memória, mais do que nunca urgente nesse tempo, nos faz sair de nossa autorreferencialidade e redireciona nosso olhar para uma conversão de nosso agir de fé.

A função profética é, provavelmente, a que mais se espera da teologia neste tempo. Desde Medellín, na América Latina, ela tem se concentrado na denúncia de um sistema que cria ricos cada vez mais ricos, à custa de pobres cada vez mais pobres, além de mostrar os desvios políticos, culturais e ecológicos desse sistema. O descuido da profecia, que tomou conta de muitos cristãos no Brasil nas últimas décadas, tornou possível regressos impensáveis na consciência social do testemunho dos discípulos e discípulas de Jesus. Pior ainda. Muitos deixaram-se enganar pela mentira travestida em verdade dos discursos ideológicos de uma religião da aparência, do culto e de um suposto louvor e adoração a um deus que nada tem a ver com o Deus da revelação judaico-cristã, defensor dos pobres e vulneráveis, promotor da vida.

Seguramente, as vozes dos mais de 400 mil mortos pela Convid-19 em nosso país clamam aos céus e aos nossos ouvidos: “eu quero a misericórdia, e não o sacrifício; e o conhecimento de Deus, mais do que os holocaustos” (Os 6,6). A denúncia, que é própria da profecia, tem em vista o apelo à conversão. Nesse sentido, os muitos mortos dessa pandemia, boa parte sucumbidos por decisões políticas equivocadas e assassinas, clamam por justiça. Eles certamente não serão atendidos, mas suas mortes não podem ser em vão, devem ser apelo à mudança de perspectiva, para que o que lhes aconteceu não se repita mais. Não só o sistema deve ser visado pela profecia, mas quem se diz cristão e se calou ou se omitiu diante do que a pandemia provocou no país. Não para suscitar culpabilidade, mas para despertar um novo olhar e um novo comportamento, feito de misericórdia e conhecimento de Deus.

A função sapiencial da teologia é, talvez, a que mais precisa ser redescoberta e reaprendida no momento presente. Em parte, porque a pandemia nos recorda algo que é constitutivo da existência humana: sua contingência, cuja assinatura mais terrível é o sofrimento e a morte, tão onipresentes no horizonte em que vivemos desde o final de 2019; em parte, porque, como aponta a profecia, há responsabilidade humana na gestão da pandemia, que remete ao grito dos que pereceram clamando por justiça. Como não se deixar levar pela fatalidade, que imobiliza toda ação e atribui as mortes a uma suposta “vontade de Deus”?

A leitura sapiencial deve mostrar que Deus não deixou seus filhos e filhas entregues às mãos de um destino fatal, que sua “justiça dura para sempre” e que o mal não tem a última palavra, mesmo que possa aparentemente vencer várias batalhas. A justiça divina e sua sabedoria são paradoxais, revelando-se não na força de quem quer ganhar com a dor e o sofrimento dos mais vulneráveis, mas na fraqueza dos que, pelo padecimento e pela morte, se tornaram um grito no silêncio no qual parecem sucumbir.  Segundo Tania Bacelar, na conferência que fez no I Congresso de Teologia Pastoral, no dia 4 de maior de 2021, Ariano Suassuna dizia-se “pessimista esperançado” diante das dinâmicas que marcam a história do Brasil. Talvez seja essa perspectiva que a tarefa sapiencial da teologia deva ajudar-nos a redescobrir em tempos tão sombrios como os que vivemos no Brasil, mas nos quais somos chamados a “esperar contra toda a esperança”.

Geraldo Luiz De Mori SJ é professor e pesquisador no departamento de Teologia da FAJE

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