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Pistas para enfrentar os conflitos em busca de uma superação

Alfredo Sampaio Costa SJ

Em um mundo globalizado, em uma Igreja conectada, somos bombardeados o tempo todo por solicitações de amizade nas redes sociais, inundados por mensagens nos grupos de whatsapp de conhecidos e desconhecidos, de todo tipo: afetuosas, amigáveis, outras nem tanto, para não dizer abertamente hostis. É esse emaranhado de relações, desejadas ou nem tanto, que constitui nosso mundo, nossa casa-comum, onde somos chamados a interagir. O smartphone não se cansa em notificar as últimas atualizações, notícias e, em meio a tudo isso, somos chamados a viver nossa fé eclesial. Dependendo de nossa situação de ânimo, experimentaremos uma oscilação de sentimentos, movimentos interiores, que variarão da irritabilidade e intolerância à empatia e compaixão. Tendemos a nos aproximarmos daqueles que comungam dos nossos ideais, valores, visão de mundo e nos fecharmos ao diferente, ao incompreendido, ao que nos parece inaceitável ou insuportável.

A figura do outro surge no horizonte cotidiano, assumindo formas diversas, mas o que é certo é que não podemos fugir da alteridade. Luis López-Yarto em um artigo iluminador na Revista Manresa (“Del Yo al nosotros. Fundamentos psicológicos de la alteridad”, Manresa 86 (2014) 109-121), ajuda-nos a perceber que forma o outro assume na nossa vida.

O outro como ameaça: sair do isolamento parece algo carregado de ansiedade, experiência ameaçadora, que produz angústia e movimentos regressivos. A interação com os outros nos atrai, como fonte de acolhida e de amparo, de receber calor e repouso. Mas ao mesmo tempo pressentimos que esse outro (ou grupo) pode também nos ignorar, fazendo-nos experimentar a rejeição e desproteção. Pode, ainda, sufocar-nos, impedindo-nos de sermos nós mesmos.

O outro me ameaça porque sua presença me faz reviver estratos muito profundos de minha história. A vida social nos obriga a adotar posturas de proteção, equiparmos com mecanismos de defesa para aplacar o sentimento de ameaça e restituir, ainda que precariamente, a segurança perdida. O outro pode ameaçar nossas ideias altruístas, nossas fidelidades inquestionáveis e os mais sólidos preconceitos que carregamos. É preciso, honestamente, assumir tudo isso se queremos constituir um dia relações autênticas e verdadeiras. Enfrentar o medo de descobrir que até uma mão estendida pode ocultar um conflito pessoal, ou um desejo manifesto de paz pode mascarar a inveja ou a rivalidade mais cruéis[1].

O outro como resposta a necessidades pessoais: o ser humano é incapaz de avançar em solidão. Somos seres necessitados, concebidos dentro de uma matriz de relações onde vivemos sempre em um mundo densamente povoado de imprescindíveis presenças humanas, que constituem parte imprescindível de nosso chegar a ser pessoas. A inclusão é a necessidade primordial de ser admitido ao mundo relacional, às atividades, à persecução de objetivos que vivem as pessoas que me rodeiam. Experimento também a necessidade de incluir a outros em minha vida, e assim, ampliar nossos limites com os dos demais seres humanos.

A segunda necessidade é a de encontrar qual é o meu lugar, qual o valor e peso que minha palavra pode ter entre as inumeráveis vozes que me rodeiam, em um esforço e luta para abrir caminho em meio a elas. A terceira necessidade será, por fim, a de dar e receber afeto. Necessidade de manifestar sentimentos positivos e conseguir que os outros os manifestem por sua vez a nós. A vida de relações como seres necessitados é um suceder-se de urgências (perguntas) que ao irem sendo satisfeitas (respondidas) permitem a construção da pessoa social que somos.

Mas a vida não pode se contentar em ser um contínuo esforço de satisfazer necessidades, que produz sempre novas insatisfações e sentimentos de frustração. Muito menos podemos considerar os outros somente como seres capazes de satisfazer temporariamente nossas necessidades.

O outro como encontro: “Toda vida verdadeira é encontro”, já dizia Martin Buber, na sua obra “Eu e Tu, em 1923. Somos pessoas-em-relação. “Quando se diz Tu, estamos dizendo ao mesmo tempo o Eu do par Eu-Tu”. Só quando me considero em relação chego a ser um “eu” verdadeiro. A categoria de “encontro” permite entender melhor o que se dá na experiência das relações interpessoais e ganha terreno no campo da mística. No encontro o outro deixa de ser uma coisa a mais entre as coisas: “O “tu” chega a meu encontro.  Entro em uma relação imediata, direta, com ele. A relação significa escolher e ser escolhido; é um encontro ao mesmo tempo passivo e ativo […]. Realizo-me no contato com um “Tu” (M. Buber, Eu e Tu).

Jacob Levy Moreno, na sua poesia intitulada “Convite a um encontro”, de 1914, escrevia:

“Um encontro a dois:

seus olhos frente a frente, face a face.

E quando estiveres perto eu tomarei teus olhos e os porei no lugar dos meus,

e tu tomarás os meus e os porás no lugar dos teus.

Então eu me mirarei com teus olhos, e tu a mim com os meus”[2].

O outro constitui uma vivência única e imprescindível, se conseguimos nos aproximar a ele em profundidade e imediatez.

A psicologia, percebendo isso, irá se dedicar com entusiasmo a conseguir que através do encontro com os outros “o indivíduo reforce seu desejo de se conhecer a si mesmo […] aprenda a viver com e manejar seu fastio e sua raiva […] na busca da própria identidade na qual está metido”[3].

A busca da própria identidade passa pelo encontro com um “Tu”. Bem cedo cairemos na conta de quão árduo resulta um caminho semeado de renúncias. Será sempre um desafio renunciar a desempenhar papéis parciais, que tenho já muito bem ensaiados, para lançar-me à aventura de improvisar e ser “eu todo inteiro e eu mesmo” diante de um tu que nada exige. Olhar o outro com seus próprios olhos significa renunciar à minha própria perspectiva emocional para adotar a do outro, eliminando um largo repertório de preconceitos que dão segurança, mas acabam impedindo o caminho da relação autêntica.

 

Abrirmo-nos ao outro é aceitar morrer e viver ao mesmo tempo

– A única maneira de tomar parte ativa e consciente no próprio desenvolvimento é aprendendo a criar em nós um clima não defensivo que vá destruindo os medos e a desconfiança na relação[4].

O caminho para o “Nós” exige desde o começo enfrentar o risco de descobrir estratégias ocultas que negam a relação verdadeira e encerram a pessoa no narcisismo. E isso não é fácil porque exige a coragem de rever uma identidade pessoal até então considerada absolutamente segura e sair em busca de uma identidade relacional certamente problemática e difícil que me devolva, um dia, a minha idade, agora muito mais enriquecida. Como afirmava na sua sabedoria e experiência Raimon Panikkar: “Preocupar-nos pela certeza total só nos leva à obsessão pela segurança”[5].

– A passagem do “eu” ao “nós” exige perguntar-nos que motivos profundos compartilhamos com outros (entre os que dão sentido à nossa vida) e superar o grande obstáculo do estereótipo e do preconceito. Tomar consciência de que nossa fome de sentido é compartilhada significa desmontar a romântica pretensão de unicidade exclusiva.

– Não podemos viver fechados em nós mesmos, saboreando apenas os matizes de nossa própria voz. Sabemos que há outras vozes fora da nossa, outras iniciativas valiosas e outras fontes de poder, e isso torna imprescindível uma humilde atitude de escuta. Sabendo que escutar implica expor-se ao outro que questiona, com sua presença e ação, nossa posição: escutar significa tornar patente a mim mesmo que é possível ser pessoa de maneira diferente.

Significa, como notava Panikkar, fazer no meu interior o vazio arriscado de desconfirmar meus juízos e descobrir que a realidade quiçá não era exatamente o que eu esperava. “Vazio possível somente com a convicção de que o outro “oculta sempre uma revelação” (ibid., 46).

Temos muito a aprender de Panikkar, de sua fé profunda no outro, percebido não como adversário, mas como experiência de revelação. Fé que o levou a aprofundar o problema das diversidades radicais: como lidar com sistemas reciprocamente incompatíveis, atitudes que se excluem e com modos de pensar radicalmente diferentes?

Antes que uniformizá-los para recolocá-los debaixo de nosso controle ou deixá-los soltos levando adiante sua dialética destrutiva, Panikkar propõe de acolhê-los, ainda que não os compreendamos totalmente, mantendo-nos em uma atitude de diálogo ininterrupto. Essa atitude pluralista, inclusiva, manifesta uma confiança radical no outro e é capaz de transformar as tensões destrutivas em polaridades criadoras[6].

– Essa passagem do “eu” ao “nós” não é uma empresa sempre pacífica: necessito ao outro não somente para medir minhas possibilidades; necessito dele para descobrir o depósito de agressividade e iniciativa que se escondem em mim. O quanto há em mim de valentia e de rebeldia. Confronto, afirmação de si e luta estão incluídos aqui. Não podemos fugir dos conflitos, mas enfrentá-los juntos para resolvê-los.

– Essa passagem exige que repensemos qual o significado de nossa incontestável necessidade de autorrealização. Se seguimos arrogantemente defendendo a todo custo meu “eu”, acabamos por abandonar as dimensões próprias de uma busca de sermos “nós”. Alguns autores cunharam essa obsessão pela própria realização de “uma preocupação narcisista abertamente irresponsável”[7].  É preciso crer que é possível uma forma de realização diversa e menos solipsista, que rompa sem escrúpulos as fronteiras das próprias necessidades.

 

Concluindo: Necessitamos trabalhar, em um esforço de autenticidade, por unificar nosso fundo afetivo, nosso pensamento reflexivo e a conversão em palavra ativa disso que sentimos e pensamos. O dia em que nossa palavra surja unificada e potente desde o fundo, existirá um “Eu” capaz de dizer de modo genuíno a palavra “Tu”[8].

 

Alfredo Sampaio Costa SJ é professor e pesquisador no departamento de Teologia da FAJE

 

[1] Luís LÓPEZ-YARTO, Del Yo al nosotros. Fundamentos psicológicos de la alteridad, Manresa 86 (2014) 111.

[2] https://brindeaoencontro.blogspot.com/2012/03/convite-ao-encontro.html Acesso em 10 de outubro de 2022.

[3] I.R. WECHSLER, R. TANNEMBAUM e F. MASSARIK, “The self in process: a sensibility training emphasis”, em WECHSLER e SCHEIN (eds), Issues in training, Washington: NTL 1962.

[4] J. R. GIBB, “Climate for trust formation”, em BRAFORD, L.P. et al., T-Group Teory and Laboratory Method, New York: Wiley and Sons 1964, 279-309.

[5] Cf. R. PANIKKAR, L’altro come esperienza di rivelazione. Città di Castello: L’altrapagina 1986,43.

[6] Cf. https://www.inchiestaonline.it/culture-e-religioni/achille-rossi-raimon-panikkar-un-pensatore-di-frontiera/  (acesso em 7.10.2022).

[7] L. W. GORDON, “Introductory Esay: Exploring Boundaries”, em GORDON, L.W. (ed.), Exploring Individual and Organizational Boundaries, New York: Wiley and Sons 1979, 1-21.

[8] Luís LÓPEZ-YARTO, Del Yo al nosotros. Fundamentos psicológicos de la alteridad, Manresa 86 (2014) 121.

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