Pesquisar
Close this search box.

Por uma beleza mais ampla: uma reflexão sobre a trilogia “O fim da beleza”

Clovis Salgado Gontijo

No dia 21 de fevereiro último, a empresa Brasil Paralelo disponibilizou gratuitamente na plataforma YouTube sua primeira produção de 2022, um documentário com duração total de três horas e meia, composto por três episódios, intitulado O Fim da Beleza. Seis semanas após o lançamento da trilogia, que custou à empresa R$ 1.500.000,00, seu primeiro episódio já conta com mais de 1.200.000 visualizações, além de quase 4.500 comentários.

O sucesso da trilogia tem muito a nos dizer sobre nosso tempo e nosso país. Por um lado, ao denunciar uma crise não só artística, mas, sobretudo, moral na atualidade, o documentário faz eco nos espectadores conservadores e nos sócios do canal, denominados “Patriotas”, que se insurgem contra os valores supostamente impostos no Brasil, de modo intencional e transgressor, por intelectuais, empresas e governos nas últimas décadas. Por outro lado, tal sucesso pode ser lido como sintoma de uma acrescida necessidade de “beleza”, experimentada por brasileiras e brasileiros de diversas faixas etárias. Insatisfeitos com a frequente negação do valor intrínseco das grandes obras de arte e com poéticas contemporâneas incapazes de proporcionar momentos de epifania, muitos de nós têm buscado um reencantamento do mundo que passa pela contemplação estética (seja pela arte, seja pela natureza). Contudo, caberia questionar se o cenário da arte nos últimos séculos confirmaria o diagnosticado “fim da beleza” e, além disso, se as premissas e as estratégias apresentadas pelo documentário seriam eficazes e convincentes.

Embora o documentário seja composto de várias vozes, entrevistados brasileiros e estrangeiros, há certo consenso entre eles. Tendem a conceber a beleza como algo objetivo, ou seja, como resultado de determinada ordenação do objeto, independente de quem o contempla. A problemática de uma explicação objetiva ou subjetiva da beleza é resolvida por uma semelhança entre, por um lado, a estrutura da recepção humana e, por outro, a estrutura do objeto belo. Recorrendo a uma hipótese pitagórica, adaptada a conceitos da geometria atual, uma das entrevistadas afirma que “nosso cérebro é organizado como um fractal, nossos olhos são fractais, assim, vemos os fractais e nos deleitamos ao vê-los”.

A sustentação da universalidade do belo por fatores objetivos incorre em certas dificuldades, que não são abordadas no documentário. O seguimento da proporção áurea por uma construção arquitetônica ou a simulação da estrutura fractal da natureza numa pintura seria suficiente para gerar a beleza? É importante ressaltar que a negação da relatividade do gosto estético não exige necessariamente uma concepção objetiva da beleza. Nesse sentido, no fim do século XVIII, Kant identificou uma universalidade nos juízos não conceituais do belo, fundamentada no próprio sujeito que os emite. Estranhamente, nem a hipótese nem o nome de Kant, ineludíveis para uma abordagem panorâmica da estética, são mencionados no documentário. O percurso histórico estabelecido percorre, de modo simplificado e impreciso, apenas três autores: Platão, Aristóteles e Santo Tomás de Aquino. A história da estética parece terminar, portanto, no século XIII, quando a estética nem sequer existia como disciplina filosófica autônoma.

A ausência do nome de Kant na trilogia, talvez, não seja algo estranho, se lembrarmos que o Iluminismo é por ela interpretado como um momento de degeneração da cultura ocidental, uma vez que, em sua busca resoluta por autonomia, tenta abolir as hierarquias (sociais, políticas e religiosas), “necessárias” para a estabilidade de um indivíduo ou de um grupo. Percebemos aqui uma intenção que não diz respeito ao esclarecimento do lugar ou do valor do belo ou da arte, mas, sim, a questões de natureza moral, que deveriam ser observadas com especial cuidado neste ano de eleições presidenciais, um “ano crucial” para o Brasil, segundo o apresentador do programa. Tal intenção para além do artístico escancara-se na seguinte fala de outro entrevistado: “Quanto mais escolhas aquele ser humano tiver, pior vai ser a possibilidade de ele tomar uma decisão. Ele trava. Isso quer dizer, no final das contas, que precisamos de algum tipo de guia na nossa vida. Tanto os fixos que temos ao nascer, quanto os sociais, o mundo das virtudes, o norte religioso, os valores superiores daquele ser humano.”

Essa afirmação, questionável no campo ético, soa particularmente deslocada no contexto de um documentário que se propõe a examinar prioritariamente uma temática estética. Se considerarmos a apreciação artística, não é difícil concluirmos o quanto esta é enriquecida pela possibilidade de experimentarmos os mais diversos repertórios e legados culturais, sem nos vermos constrangidos pela necessidade de escolher, de modo excludente, um ou outro estilo, gênero ou obra de arte. Contudo, esta não é, decerto, a posição defendida pela trilogia, partidária de uma espécie de estética normativa, questionada por autores como Luigi Pareyson, justamente por limitar a criação artística, mais ampla que as regras estabelecidas de maneira prévia à feitura da obra. Dentro de uma normatividade, não só as configurações e os recursos artísticos se reduzem quanto a apreciação se congela de acordo com preceitos e expectativas nem sempre indispensáveis à arte.

A proposta normativa se manifesta em vários momentos do documentário. Em primeiro lugar, na própria concepção de beleza, cujo suposto “fim” é rastreado a partir do antropocentrismo renascentista. Como já mencionado, tal beleza parece definida por padrões formais e numéricos pré-existentes tanto na natureza quanto no ser humano (e passíveis de identificação nas obras de arte), fator que dificultaria a receptividade a produções e a “linguagens” artísticas construídas a partir de outras estruturas. Além disso, são identificadas, como pré-requisitos para a arquitetura, a ornamentação e uma relação de semelhança entre a edificação e o rosto humano, capaz de nos proporcionar, como nos Jardins de Tivoli ou na Disneylândia, uma sensação de aconchego. Diante dessa última regra, como seria possível afirmar a beleza de um templo grego (considerado, pelo documentário e pelo senso comum, como uma obra canônica) diante do qual não visualizamos um rosto ou de uma obra arquitetônica contemporânea, como o Museu do Amanhã, cuja inspiração mimética, segundo Santiago Calatrava, seu criador, teria sido um barco, um pássaro ou uma bromélia?

O reconhecimento de um rosto numa obra de arte se coloca não só como uma exigência para a arquitetura, arte que, curiosamente, não costuma ser concebida como mimética, mas também para as artes plásticas. Com uma pretensão nitidamente normativa, um sacerdote brasileiro afirma, no primeiro episódio da trilogia: “Quando você tira o rosto da frente da pintura e a paisagem que era apenas um fundo vem para a frente da pintura e se torna apenas isso a arte, você tirou a pessoalidade da arte, da beleza e, ainda mais, quando você abstrai inclusive a natureza como objetiva e faz com que isso se torne uma coisa fragmentada, você, além de abstrair a pessoa, está abstraindo a própria natureza na qual a pessoa deveria viver.” Além de limitar as possibilidades da arte, essa passagem contém uma série de imprecisões. Em primeiro lugar, a pessoalidade da arte realmente se apaga quando o artista deixa de retratar o rosto humano? Muito da nossa humanidade, composta por temores, paixões, realizações e anseios, não se expressa nas contorções dos ciprestes de Van Gogh ou num quarteto de cordas de Beethoven, privado de qualquer conteúdo descritivo? Em segundo lugar, para um documentário cuja compreensão de “beleza está subjugada a uma noção sacra”, seria possível esquecer a relevância de obras não figurativas dentro das tradições monoteístas, como os ricos traçados geométricos em iluminuras cristãs medievais ou o intricado abstracionismo da arte islâmica (incluído entre as imagens exibidas pela série), sinal de reverência à radical transcendência divina, situada para além de qualquer pretensão de representação? Quanto às contradições relativas à dimensão sacra da obra de arte, caberia recordar que o documentário interrompe a história da estética no período medieval e identifica uma perda crescente da devoção religiosa a partir do Renascimento. Como deixar de lado o retorno ardoroso à fé cristã nos períodos da Reforma e da Contrarreforma, que nos legaram grandes obras na pintura, na escultura, na poesia, na música e na arquitetura?

Em relação ao barroco, a única alusão feita ao estilo concerne à sua releitura pela arquitetura colonial brasileira, que surge como um dos poucos pontos de referência, endossados pela trilogia, para novas propostas arquitetônicas saudavelmente conectadas com a tradição. Aliás, a remissão à tradição aparece como outra norma fundamental para a arte, no fim do último episódio: “O dever de nosso tempo não é imitar o passado, mas rimar com ele.” Considerando a vastidão de nosso passado, seria preciso perguntar com qual passado deveríamos rimar as obras de arte do presente.

Com certeza, a trilogia não recomendaria aos artistas deste tempo que rimassem suas obras com (nossas) poéticas modernistas. O modernismo na arquitetura é literalmente demonizado ao longo da série. Sem temer generalizações, esta apresenta, como epítome do catastrófico “fim da beleza”, a arquitetura moderna, obrigatoriamente fria, mecânica, controladora e desumana em suas proporções. Até mesmo a arquitetura modernista de Oscar Niemeyer, que incorpora o elemento orgânico das curvas, é rejeitada, por completo, por um professor brasileiro de filosofia medieval. Adotando não só uma postura normativa, mas um tom de censura platônico, este afirma: “As curvas de algumas construções de Niemeyer que repetem as das mulatas são curvas, digamos assim, insinuantes, mas que, projetadas na pólis, no seio da urbanidade, não contribuem para a visão de ordem que é tão importante para a sociedade.”

Talvez Niemeyer esteja incluído, de acordo com a visão da entrevistada estadunidense Ann Sussman, especialista em arquitetura cognitiva, entre os arquitetos das jovens nações que abraçaram o modernismo “por não terem bagagem para copiar a antiga arquitetura francesa ou alemã”. De qualquer forma, a desvalorização de Niemeyer acarreta a desvalorização da cidade de Brasília, sua obra mais emblemática. E, por sua vez, essas duas desvalorizações vêm acompanhadas de uma terceira, provavelmente motivada, mais uma vez, não só por fatores artísticos: a depreciação do presidente Juscelino Kubitschek, idealizador e construtor da atual Capital Federal. Desconsiderando por completo as necessidades de desenvolvimento do Brasil da época, um especialista em história da arquitetura chega a reduzir a mera vaidade a iniciativa do estadista: “Brasília é o resultado de um sonho de um presidente que quer deixar seu nome na história.” No entanto, ao consultarmos outra trilogia, Meu caminho para Brasília, escrita pelo próprio JK, percebemos a incorreção de uma das hipóteses fundamentais do documentário: a opção pela arquitetura moderna nem sempre coincide com uma proposta de massificação e alienação dos habitantes de uma cidade. Em passagem esclarecedora de A escalada política (segundo volume de Meu caminho para Brasília), o ex-presidente rememora um episódio marcante de sua gestão como prefeito de Belo Horizonte. Ao consultar o urbanista francês Alfred Agache sobre possíveis destinações da Pampulha, este sugeriu a construção de uma cidade-satélite, “um centro de fornecimento, ou melhor, um núcleo abastecedor da capital”(1) . Contudo, esse não era o objetivo de JK, para quem “um prefeito não deve pensar tão-somente em coisas práticas. A beleza, sob todas as formas, precisa fazer parte de suas cogitações. Numa cidade, vivem massas humanas que sentem que são capazes de emoções e que, portanto, não prescindem de estimulantes espirituais”(2) . E a busca da beleza acompanhou Juscelino, admirador das artes conectado às poéticas de seu tempo, em outros momentos de sua carreira política.

Voltando ao exemplo de Brasília, recordamos a possível influência dos arcos do Mercado Municipal de Diamantina no traçado dos arcos (subversivos?) do Palácio da Alvorada, em Brasília. O modernismo também estabelece suas rimas visuais com o passado. Mais uma contradição do documentário, que, enquanto desqualifica a arte moderna explícita ou implicitamente (como na comparação silenciosa entre as telas de Miró e a Pietà de Michelangelo), utiliza-se de composições modernas de Satie e de Villa-Lobos como suave música de fundo… Embora diga que a arte não deve imitar o passado, o documentário propõe um ressurgimento da beleza mais por repetições que por rimas, como sugere o exemplo citado da Catedral de Cristo Salvador, em Moscou, reconstruída fidedignamente ao modelo original, no fim do século XX. Assim, restaria uma única saída para o reencantamento do mundo: a completa rejeição das artes moderna e contemporânea, como se nelas não houvesse lugar para qualquer vestígio de sacralidade ou de beleza, e a exigência de seguimento, pelos artistas de nossa época, de pseudonormas estéticas, obtidas indutivamente a partir da natureza ou de obras canônicas.

Àqueles sedentos de beleza, é preciso dizer que a definição do termo não é simples nem acabada, caso contrário, a própria definição serviria de norte – como já mostrou Kant – para decidirmos o que seria ou não uma bela obra de arte. Ao contrário do que defende o documentário, a história da arte não se constrói progressivamente a partir de “tentativas e erros”. A beleza não se encontra apenas na realização de uma perspectiva visual e de um contraponto musical perfeitos. Admiramos as pinturas chapadas românicas e o canto gregoriano, de textura monofônica. De fato, certa configuração de beleza deixou de ser predominante a partir do início do século XX. Contudo, também existe uma concepção de beleza mais ampla, que, comovendo-nos a partir da imaginação ou da sensibilidade, somos capazes de reconhecer, sem conseguir definir de uma vez por todas. Infelizmente, muitas obras atuais não logram obter a comoção, o transporte, o enlevo ou o desvelamento que esperamos da arte. No entanto, isso não quer dizer que precisemos remodelar ou moralizar toda a sociedade para recuperarmos o belo artístico. Desde a tragédia grega, um dos grandes mistérios da arte é justamente a conversão em beleza do que também há de obscuro na experiência e na natureza humanas.

Clovis Salgado Gontijo é professor e pesquisador no departamento de Filosofia da FAJE

  1. [1] KUBITSCHEK, Juscelino. Meu caminho para Brasília, v. 2. A escalada política. Rio de Janeiro: Bloch Editores, 1976. p. 31.
  2. Ibid., p. 35.
...