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Por uma “justiça doida”

Geraldo De Mori SJ

Sede perfeitos porque vosso Pai celeste é perfeito” (Mt 5,48)

Dentre as muitas notícias que marcaram a imprensa brasileira nos últimos dias, uma chama a atenção: a execução de Lázaro Barbosa, serial killer que havia assassinado uma família no Distrito Federal e que foi perseguido pela polícia durante várias semanas.

Lázaro Barbosa ocupou por quase um mês os noticiários nacionais, causando revolta por seus crimes, mas também admiração, pela esperteza em esconder-se, em mover mais de 200 policiais numa caçada impressionante, em tecer relações com o crime organizado e com fazendeiros. O mais chocante, porém, pelo menos deveria ser, sobretudo para quem se entende à luz da fé cristã, é que à notícia de sua morte e no momento da chegada de seu corpo ao IML de Goiânia, tenha havido queima de fogos e “buzinaço”. Talvez essas manifestações sejam a expressão de um alívio catártico diante da insegurança que o fato de ele estar solto provocava na população. Elas podem ainda ser a manifestação espontânea do desejo de vingança, que faz com que queiramos responder ao mal pelo mal, atualizando mimeticamente a antiga lei de Talião: “olho por olho, dente por dente”, que tem perigosamente sido alimentada por muitos grupos sociais violentos e encontra respaldo no sentir comum de parte significativa da população.
A execução, com 13 tiros, de um criminoso, em 1962, está na origem do conto “Mineirinho”, de Clarice Lispector, que vale a pena ser recordado no atual momento do Brasil, sobretudo diante das “comemorações” da morte de Lázaro Barbosa, em Goiânia.

A autora começa assim seu texto: “É, suponho que é em mim, como um dos representantes do nós, que devo procurar por que está doendo a morte de um facínora”. Sua reação, portanto, não é a dos que teriam “comemorado” a morte de Lázaro Barbosa como não comemora a de Mineirinho, mas a de quem busca suas razões. Segundo ela, a lei que sustenta a sociedade está baseada numa lei fundamental, a “primeira lei, a que protege corpo e vida insubstituíveis” e que diz “não matarás”. Essa lei, continua a autora, “é minha maior garantia: assim não me matam, porque eu não quero morrer, e assim não me deixam matar, porque ter matado será a escuridão para mim”. Essa lei, observa Clarice, “me faz ouvir o primeiro e o segundo tiro com um alívio de segurança”, mas, no “terceiro me deixa alerta, no quarto desassossegada”, no quinto e no sexto me cobre de “vergonha”, no sétimo e no oitavo enche meu coração de “horror”, no nono e no décimo me deixa “trêmula”, no décimo primeiro me faz dizer com espanto o “nome de Deus”, no décimo segundo me leva a chamar “meu irmão”. “O décimo terceiro tiro me assassina – porque eu sou o outro. Porque eu quero ser o outro”.

Esta série de significados para cada tiro que matou Mineirinho leva a autora a interrogar-se sobre “essa justiça que vela meu sono”, que ela “repudia, humilhada por precisar dela”. Trata-se, segundo Clarice, da justiça que faz funcionar a sociedade, que é uma “justiça sonsa”, que nos permite dormir, mas enquanto dormimos, “falsamente nos salvamos”, pois quando os treze tiros nos acordam é “tarde demais”. A morte de Mineirinho, prossegue a autora, “rebentou o meu modo de viver”, pois revelou que “tudo o que nele foi violência é em nós furtivo”. A justiça que agiu para ele faz com que a “casa”, que é a sociedade baseada na lei que a sustenta, “não estremeça”. “Não quero esta casa”, declara a autora, ou seja, a justiça que faz com que a sociedade funcione. Prefiro a “justiça prévia, essa não me envergonharia”. Essa justiça nos tornaria “mais divinos”, pois nos faria descobrir a “bondade de Deus”, levando-nos igualmente a adivinhar “em nós a bondade, aquela que vê o homem antes de ele ser um doente do crime”. Na verdade, diz a autora, o deus que sustenta a sociedade e a faz dormir tranquila, é o deus que a transforma em “sonsos essenciais, baluartes de alguma coisa”.

Sem fazer referência ao Sermão da Montanha (Mt 5-7) ou ao texto paulino da loucura da cruz (1Cor 1,18-31), Clarice traz para seu conto o apelo de Jesus a uma “justiça superior à dos escribas e fariseus” (Mt 5,20) ou a exortação paulina à destruição da “sabedoria dos sábios e da inteligência dos inteligentes” (1Cor 1,19). A “justiça prévia” da qual ela fala é justamente a que Jesus, no Sermão da Montanha, expressa como oferecer a face esquerda a quem bate na face direita (Mt 5,38-39), ultrapassando o mandamento do amor ao próximo e do ódio ao inimigo, para amar o inimigo e orar por quem nos persegue (Mt 5,43-47). De fato, na continuidade do conto, a autora propõe a “justiça doida” contraposta à “justiça tonta”. Segundo ela, somente como “doidos e não como sonsos”, podemos entrar “pela vida que tantas vezes não tem porta”, compreendendo então “o que é perigoso compreender” e chegando assim a sentir o “amor profundo”. Ser doido, diz a autora, faz emergir “uma justiça um pouco mais doida”, que leva em conta “que todos temos que falar por um homem que se desesperou porque neste a fala humana já falhou”. Esta justiça “doida” é a “justiça prévia”, que lembra que “nossa grande luta é a do medo”. Nesse sentido, “todos somos perigosos”. Na verdade, “na hora em que o justiceiro mata, ele não está mais nos protegendo nem querendo eliminar o criminoso, ele está cometendo o seu crime particular”. Na morte de um criminoso, “nesse instante está sendo morto um inocente”.

Mineirinho e Lázaro Barbosa, e tantos outros a quem o “justiceiro mata” devem interrogar a consciência que se diz humana e mais ainda a que se diz cristã. Em sua bimilenar história, apesar de ter admitido a pena de morte, o cristianismo tem se mostrado cada vez mais contrário a ela. A transformação do outro em “inimigo”, que caracteriza o processo social e político do Brasil, tem introduzido a naturalização da pena de morte no país, apesar de não constar na constituição nacional. Se esta naturalização da morte do criminoso é problemática, quanto mais sua comemoração. Ela é o atestado mais terrível da perda do “princípio de humanidade”, que torna toda vida insubstituível, portadora dos direitos mais inalienáveis. Mais que a “segurança” e o “desassossego”, os muitos tiros que crivaram o corpo de Lázaro Barbosa deveriam provocar em cada um de nós “vergonha”, “horror”, além de nos deixar “trêmulos” e levar-nos, “com espanto”, a dizer o nome de Deus, para descobrir que o assassino é um “irmão”, pois somos capazes de nos tornar esse “outro” a quem é negado o reconhecimento de toda humanidade.

Geraldo De Mori SJ é professor e pesquisador no departamento de Teologia da FAJE

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