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Pregação… um ofício perigoso! Refletindo com Antônio Vieira

Luiz Sureki, SJ

A qualidade literário-teológica da obra do renomado orador jesuíta português Antônio Vieira é inquestionável. A cuidadosa elaboração exegético-pastoral-doutrinal de seus sermões, por exemplo, permeada de uma espiritualidade criativa e provocante, sempre desperta em nós a reflexão, ora do tipo mais orante, meditativa, contemplativa, ora mais existencial, teológica, filosófica.

Em um de seus sermões, intitulado Sermão da Sexagésima – no penúltimo domingo antes do início da Quaresma –, proferido na Capela Real de Lisboa, em 1655, o pregador Pe. Vieira está pregando sobre a arte de pregar. Numa belíssima interpretação da passagem do Evangelho conhecida como “a parábola do semeador” (Mt 13,3-23), Vieira apresenta, primeiramente, os diferentes lugares “espirituais” –  à beira do caminho, entre as pedras, entre os espinhos etc. –  em que a semente lançada, a palavra de Deus, não produzira frutos; até chegar, acompanhando a narrativa da parábola, ao solo espiritual fértil em que a semente aí lançada germina, finca raízes profundas no solo, cresce livremente e produz os frutos esperados pelo semeador. Jesus mesmo havia explicado aos discípulos o significado da parábola (Mt 13, 18-23). Uma vez compreendida, somos todos interpelados a refletir sinceramente até que ponto a superficialidade, a dureza, as preocupações/inquietações pessoais nossas oferecem resistência à germinação, crescimento e frutificação da palavra de Deus; somos, portanto, convidados a examinar o solo do nosso próprio coração, em que a palavra de Deus está sendo, continuamente, lançada pelo semeador divino.

Na segunda parte de sua brilhante pregação, com a maestria que lhe era peculiar, Vieira dirá que o principal responsável ou culpado pela não frutificação da semente, da palavra de Deus, no coração dos ouvintes é o pregador.

 

Se a palavra de Deus é tão poderosa, se a palavra de Deus tem hoje tantos pregadores, por que não vemos hoje nenhum fruto da palavra de Deus?

Sabeis, Cristãos, por que não faz fruto a palavra de Deus? Por culpa dos Pregadores. Sabeis, Pregadores, por que não faz fruto a palavra de Deus? Por culpa nossa.

É porque as palavras dos pregadores são palavras, mas não são palavras de Deus.

Semeadores do Evangelho, eis aqui o que devemos pretender nos nossos sermões, não que os homens saiam contentes de nós, senão que saiam muito descontentes de si mesmos.

Contanto que se descontentem de si, descontentem-se embora de nós.

 

O pregador que realmente prega a palavra de Deus não deveria estar preocupado em contentar os seus ouvintes; nem estes deveriam estar esperando, da parte do pregador, ouvir tão somente aquilo que os agradasse. Por outro lado, Vieira não explorou muito a possibilidade de os fiéis voltarem para suas casas muito mais descontentes com o pregador do que descontentes de si mesmos! Ele apenas disse que os fiéis até poderiam voltar para suas casas descontentes com o pregador, desde que antes estivessem descontentes de si mesmos. Poderíamos nos perguntar até que ponto o descontentamento para consigo mesmo dos fiéis poderia ter lugar neles sem um franco descontentamento deles também para com o pregador.

Haveremos de concordar que nem sempre voltamos para casa, depois da celebração, simplesmente descontentes de nós mesmos, mas, por vezes, voltamos para casa muito descontentes com o pregador! Este descontentamento em relação ao pregador pode ser ambíguo: pode ser porque ele não pregou a palavra de Deus, como deveria, e que nós gostaríamos de tê-la ouvido; ou pode ser justamente porque ele pregou a palavra de Deus que nós não gostaríamos de tê-la ouvido como tal, com todas as profundas consequências existenciais que ela costuma provocar na vida e para nossa vida.

Na lógica do cotidiano, tendemos a pensar muitas coisas ao modo do diretamente proporcional: quanto mais contentes estamos com o “nosso” pregador, mais contentes haveremos de estar conosco mesmos; e quanto mais descontentes estamos conosco mesmos, mais descontentes haveremos de estar com o “nosso” pregador. Aqui o “nosso” (entre aspas) tem o propósito de assinalar o fato de que o pregador da palavra de Deus não é nosso! O pregador não está imediatamente ao nosso serviço, não é um funcionário nosso a quem pagamos para nos dizer tão somente aquilo que nós decidimos que queremos ouvir dele. O pregador está, antes de tudo, a serviço do Evangelho, à serviço da palavra de Deus. Pregar a palavra de Deus é correr o risco de despertar o descontentamento de muitas pessoas. Esse descontentamento pode se transformar em ódio, perseguição e morte. Assim foi com os profetas em Israel, assim foi com o próprio Jesus Cristo, assim também foi com os seus apóstolos, com seus discípulos/discípulas ao longo da história; assim continua sendo hoje.

À luz da parábola do semeador, Vieira reivindica para o pregador o dever que este tem de pregar tão somente a palavra de Deus. Ele bem sabia no seu tempo, assim como nós sabemos no nosso tempo, que isso não é tão óbvio quanto parece, ou seja, que não era e nem é de todo raro que os pregadores manipulem a palavra de Deus com vistas a interesses próprios, egoístas bem pouco ou nada evangélicos, e que justamente isso cause contentamento nas pessoas! Com efeito, uma boa sensação é causada na pessoa quando esta ouve do pregador somente palavras açucaradas, anunciadas “em nome de Jesus”, na forma de promessas de bem-estar, de prosperidade econômico-financeira, de ascensão social, de prestígio, de poder. O que ocorre aqui neste último caso é que o pregador não está nem a serviço da palavra de Deus nem a serviço dos fiéis e, no final das contas, nem a serviço de sua própria vida em matéria de salvação. A palavra que ele prega será o seu próprio juiz! (Mt 7,22).

As palavras mais duras que Jesus proferiu não foram dirigidas aos pagãos, infiéis, pecadores, prostitutas, cobradores de impostos, mas aos líderes da religião que supostamente estavam pregando a palavra de Deus aos fiéis. Ele disse: “Vós sois filhos do diabo, e quereis satisfazer os desejos de vosso pai. (…) Quando ele profere mentira, fala do que lhe é próprio, porque é mentiroso, e pai da mentira” (Jo 8,44). Não esqueçamos que até mesmo um lugar “sagrado” como o Templo pode ser transformado num covil de ladrões! (Mt 21,13); e que até os demônios podem confessar Jesus como o Filho de Deus, sem, contudo, aceitá-lo como tal (Mc 1,24; Lc 4,34).

É comum hoje em dia as pessoas trocarem de igreja por causa do pregador: pastor/pastora, padre; e associarem essa mudança de igreja à uma verdadeira conversão pessoal a Cristo. Se a tal conversão pessoal for conversão ao Evangelho de Jesus Cristo, e a igreja à que agora pertence for uma outra igreja cristã, dificilmente se poderia entender isso como uma real mudança existencial na vida da pessoa, pois do mesmo modo que a mudança teria ocorrido por causa do pregador que não a agradava, haverá de ocorrer novamente sempre e quando o pregador não lhe agradar mais. A palavra de Deus, viva e eficaz, não é refém de pregador algum nem de igreja alguma enquanto denominação institucional! O critério fundamental que distingue uma igreja que é de Jesus Cristo de uma outra que não é, é a centralidade que o próprio Jesus Cristo, a Palavra de Deus (com letra maiúscula) nela ocupa ou não.

Podemos ousar pensar que no cristianismo do futuro essas denominações cristãs institucionais ou institucionalizadas desaparecerão. E isso por pelo menos dois plausíveis motivos. O primeiro, porque nenhuma instituição religiosa, nem a soma de todas elas, são sinônimo de salvação para alguém. Nenhuma instituição cristã pode dizer: “eu sou o caminho, a verdade e a vida”; “eu sou a ressurreição e a vida”. Reduzir Cristo à uma religião chamada de cristianismo e, mais ainda, reduzi-lo a uma determinada denominação ou igreja cristã, é não ter entendido o próprio Cristo e a universalidade do amor divino que nele foi manifestado no todo da criação. O segundo, porque a consciência religiosa futura se estenderá ao universo ou aos multiversos, à grandeza imensurável do Deus-Espírito-Criador e sua Palavra criadora.

Em todo caso, fica reiterada aqui uma tríplice responsabilidade que carregam consigo todos aqueles e aquelas que pregam a palavra de Deus. Primeiramente, pregadores e pregadoras, vós sois responsáveis para com a palavra, pois esta não é vossa, mas é de Deus. Em seguida, sois também responsáveis para com os filhos e filhas de Deus a quem vos dirigis, pois estes não são meros ouvintes das vossas palavras, mas são antes de tudo os vossos irmãos e irmãs. E, finalmente, vós sois responsáveis para convosco mesmos enquanto também vós sois destinatários da palavra de Deus; o que pregais aos outros vale em primeiro lugar para vós mesmos. Vieira o expressou assim: “quero começar pregando-me a mim. A mim será, e também a vós: a mim para aprender a pregar: a vós para que aprendais a ouvir”.

Luiz Sureki, SJ é professor e pesquisador no departamento de Filosofia da FAJE

 

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