Geraldo De Mori, SJ
“Construirão casas e nelas habitarão” (Is 65,21)
Vários jornais noticiaram no dia 11 de dezembro alguns dados sobre a população de rua no Brasil. Entre 2013 e 2023, o aumento foi de 935,31%, passando de 21.934 a 227.087. Desse total, 69% são negros (51% pretos e 18% pardos), 57% têm entre 30 e 49 anos, jovens entre 18 e 29 anos somam 15% do total, pessoas entre 50 e 64 anos somam 22%, crianças e adolescentes correspondem a 2,5%, e idosos a 3,4%. Quanto à procedência: 70% moram em seu estado natal, 4,7% são estrangeiros. Os motivos por estarem na rua: 47% por problemas familiares, 40,5% por conta do desemprego, 30,4% por causa do álcool ou das drogas. Desse total, 24% não possuem certidão de nascimento.
Para além dos números, próprios aos estudos baseados em estatísticas, chama a atenção nessa notícia o crescimento exponencial nos últimos dez anos de pessoas em situação de rua, o alto índice, entre elas, de negros e a alta porcentagem de jovens adultos e de jovens (72%). Esses dados, para quem não se tornou insensível à situação dos que vivem na grande precariedade, não deixam de questionar e incomodar. Como alguns sociólogos e psicólogos têm mostrado em seus estudos, os que vivem em situação de rua são “produtos” de um sistema que não tem nenhum escrúpulo em produzir “descarte”, como tem denunciado o Papa Francisco em seus textos e pronunciamentos.
Alguns estudos antropológicos estabelecem a diferença que existe entre casa e rua. A casa, lugar da intimidade da família ou de quem nela mora, é, em geral, o espaço do que comumente se chama lar, no qual, em geral, as pessoas se sentem seguras, cuidadas, apreciadas e amadas. Nela se vivem as relações mais íntimas, como as dos amantes, mas também as que podem surgir dessas relações, os filhos, que dão origem às experiências de paternidade, maternidade, filiação, fraternidade, sororidade. Nas casas, que podem ser minúsculas, situadas em aglomerados e favelas, ou enormes, localizadas em bairros de classe média e alta, ou corresponder aos apartamentos modestos de edifícios localizados em bairros populares ou, elegantes, situados em condomínios de alto padrão, também se tecem relações com outros componentes da família mais ampliada, como os avós, os tios e tias, os primos e primas, e ainda com os vizinhos e amigos, aos quais se convida para uma refeição ou para uma visita, na qual se partilha a vida, os sonhos, as tragédias e dores.
A rua, segundo esses mesmos estudos, é o oposto da casa, não é lugar de intimidade, mas do que é público. Nela circulam pessoas, meios de transporte, como os coletivos, ônibus, metrôs, trens, carros, motos, bicicletas, patinetes. As ruas são o lugar de outro tipo de relações, como as das trocas comerciais, estabelecidas pela compra e venda de produtos nas diferentes lojas, as das manifestações dos movimentos sociais, como passeatas que reivindicam direitos de todo tipo, comícios, em que se tenta convencer o eleitor a dar seu voto, mas também o lugar no qual circulam discursos de outro tipo, como os religiosos, propostos por quem se diz doador de um outro sentido – o religioso -, oferecido muitas vezes em procissões e marchas, mas também em pregações ou diante de um templo, para convencer os passantes a entrarem. A rua representa ainda o espaço da festa, como, no caso do Brasil, a do carnaval, ou do lazer, como o de uma competição esportiva. Na rua também existem muitos riscos, como os de assaltantes e bandidos que querem roubar ou enganar, e, por isso, nelas o aparato policial e militar também se torna presente.
Essa breve descrição das duas relações constitutivas do ser humano com o espaço da intimidade e da publicidade suscita algumas questões frente o alto índice de crescimento da população de rua no país nos últimos dez anos. O que a ausência da casa ou sua redução ao espaço miniaturizado de uma barraca ou de um colchão e um cobertor estendido numa marquise significam para quem perde o espaço da intimidade do lar? Até que ponto a ausência dessa intimidade ou sua transformação em visibilidade assegura a quem vive nessas condições o mínimo de dignidade? Pode a rua substituir o lar e criar o que só nele se realiza, a saber, as relações constitutivas do que é o mais íntimo de alguém?
Quem trabalha com pessoas em situação de rua, assistentes sociais, psicólogos agentes de pastoral, descobre nesse mundo não só miséria e desumanização, mas também muitas experiências impressionantes de humanidade, capacidade de entrega e dom de si. Muitas pessoas constituem família na rua, ou vão para a rua em família, e tentam assegurar um mínimo de condições para que sua dignidade seja preservada. Outras, em grande número também, são testemunhas vivas do que a sociedade do consumo e do indivíduo pode criar em termos de destruição afetiva dos que são por ela descartados. Outros ainda, envolvidos em álcool e drogas ou abandonados pelas famílias por terem algum tipo de deficiência psíquica ou mental, vivem como que fora do mundo ou num transe permanente. Para todos, porém, a rua se tornou casa ou lar, e nela tentam assegurar sua existência, pedindo esmolas, oferecendo pequenos serviços, roubando, interagindo.
A inversão antropológica, que faz com que a rua se torne casa, presente em tantas cidades brasileiras, mas também em outras partes do mundo, questiona fortemente a sociedade do indivíduo, baseada na produção e no consumo, provocando a ruptura de muitas relações fundamentais construídas na intimidade do lar, nem sempre asseguradas no espaço público da rua. Muitas pessoas simplesmente fecham os olhos para essa situação. Outros temem as pessoas que vivem nas ruas, pois as identificam com possíveis delinquente ou bandidos. O poder público tem se ocupado em muitos lugares dessas pessoas, proporcionando-lhes alguns atendimentos mínimos, como lugar para banho, alimentação, consultas médicas e, em algumas cidades, aluguel para saírem da rua. Várias iniciativas da sociedade e das igrejas tentam assegurar outros tipos de atendimento, estabelecendo relações, tentando reconectar muitos desses moradores a seus vínculos. O crescimento exponencial dessa população deveria, no entanto, levantar não só iniciativas paliativas ou assistencialistas, mas também questionamentos mais radicais. O que leva tanta gente a escolher a rua, muitas vezes até preferir a rua à estabilidade do lar? Certamente há fatores psicológicos, e outros relacionais, como aparece nas estatísticas, muitos deles diretamente associados a violências familiares, mas, não é o próprio modelo no qual se baseia a sociedade atual que precisaria ser questionado? O que esse aumento enorme do número de moradores de rua revela da sociedade brasileira neste momento?
Na bíblia, a casa é muitas vezes identificada como lugar do cumprimento das promessas de Deus para seu povo. De fato, o Egito foi identificado em muitos textos como “casa da servidão”, e a terra prometida, além de ser lugar em que corre “leite e mel”, lugar em que “construirão suas casas e nelas habitarão” (Is 65,21). Jesus utiliza a metáfora da casa para falar da pessoa que ouve a palavra e põe em prática, casa construída sobre a rocha (Mt 7,24-27). Ele mesmo, embora não tivesse onde “reclinar a cabeça” (Lc 9,58), foi acolhido em muitas casas, como a de Pedro, de quem curou a sogra (Mc 1,29-31). Visitava a família de Lázaro, Maria e Marta (Lc 10,38-42). A última ceia a celebrou numa casa (Mc 14,13-16). A Igreja é associada à casa em vários textos do Novo Testamento (At 8,3; Rm 16,5; 1Cor 16,19). O Natal que se aproxima vai, no entanto, recordar que o casal que veio de Nazaré para ser recenseado em Belém, não encontrou lugar na hospedaria (Lc Lc 2,7), nascendo no lugar destinado aos animais, como muitos dos moradores de rua. Os pastores tiveram, porém, o anúncio dos anjos que os convidaram a reconhecer naquele menino a “grande alegria” do nascimento do “Salvador, que é o Cristo Senhor” (Lc 2,10-11). E o sinal era um menino envolto em faixas deitado na manjedoura (Lc 2,12). Oxalá, nossos olhos ainda sejam capazes de reconhecer em tantos moradores de rua sinais de alegria e esperança, que mobilize também a inteligência e a vontade para ações que não sejam apenas paliativas, mas que tornem possível para todos um lugar em que possam viver com dignidade, tendo sua intimidade preservada, vivendo mais plenamente sua humanidade.
Geraldo de Mori, SJ é professor e pesquisador no departamento de Teologia da FAJE