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Que o amor vença o ódio: por uma pluralidade enriquecedora

Alfredo Sampaio Costa SJ

 

“Eu não rogo somente por eles, mas também por aqueles que vão crer em mim pela palavra deles. Que todos sejam um” (João 17,20)

 

Não obstante as palavras do Evangelho, assistimos a um crescente estranhamento, ódios, divisões, entre católicos de diversos grupos. É necessário assumir esta realidade e, a partir dessa consciência, refletir e buscar possibilidades de como reagir a essa realidade[1].

É notável como as questões religiosas dominaram o cenário político nas últimas eleições. A polarização política expressou também uma divisão dentro da própria Igreja. É preciso reconhecer, ainda que nos custe, que estamos longe de alcançar uma comunhão na Igreja, no que diz respeito a posicionamentos, atitudes, modos de pensar. Mas não se trata somente de uma pluralidade de opiniões.

González Faus, analisando o significado original da palavra grega “hairesis”, origem da nossa palavra “heresia”, aponta que ela afirma, conforme o texto paulino de 1 Cor 11,19, uma “diversidade de opiniões parciais”. Parciais no sentido de fragmentárias ou não totais. Esta parcialidade e a consequente diversidade de opiniões podem nos enriquecer se as confrontamos e nos ajudam a compreender que todos nós somos parciais e ninguém abarca a totalidade, por mais que assim nos pareça[2]. A questão é quando a parcialidade é de tal forma absolutizada que acaba por negar espaço a elementos imprescindíveis da identidade cristã.

Diversidade de opiniões, enfrentamentos, fazem parte da vida ordinária. A proliferação das redes sociais e plataformas digitais possibilitou, contudo, uma explosão de suspeitas, acusações entre grupos de distintas sensibilidades. O povo de Deus diante da troca de acusações muitas vezes sente-se perdido ou acaba sendo influenciado e manipulado a tomar posição, mesmo sem entender direito as questões de que se está tratando.

No passado, a referência era sempre a palavra da autoridade da Igreja, o Papa, os bispos, os sacerdotes… Hoje o diálogo entre a hierarquia e o povo de Deus igualmente tem se revelado insatisfatório. Uns não se sentem plenamente obedecidos ou atendidos em suas orientações e diretrizes; outros não se sentem suficientemente escutados. Assistem a membros da própria hierarquia desferirem ataques e julgamentos fortes contra o Papa Francisco, Conferências episcopais inteiras, utilizando-se para isso, principalmente, das ferramentas digitais.

Moisés Sbardellotto expõe o panorama que encontramos hoje:

“Hoje, nos contatos por meio da internet, toda opinião é passível de outra opinião, em sentido frontal e agressivamente contrário. Não basta gostar ou desgostar de algo: é preciso também desgostar daqueles que gostam daquilo de que não gosto. A raiva e o rancor se digitalizam e permeiam sites e redes sociais digitais mediante expressões de intolerância, indiferença, desinformação, negacionismo, difamação, discriminação, preconceito, xenofobia. O ódio, assim, ganha forma de bits e pixels, principalmente pela ação dos chamados haters, os odiadores digitais”[3].

Basta circular pelas redes para verificar a frequência com que tais autoridades são censuradas publicamente como “hereges” (ou coisas piores) em comentários públicos e em vídeos dos chamados “youtubers católicos”, que se erigem em “grandes guardiões da verdade […], novos mestres do saber da fé, criando novas sumas e tratados […], criando para si e em torno a si novos oráculos da revelação”[4].

 

A autoridade digital de quem pretende definir o “verdadeiro” catolicismo

Encontramos em muitos grupos de linha conservadora uma pregação bem-marcada de exclusão de tudo o que seja “catolicamente diferente” e de todos os “catolicamente outros”. Para tais grupos extremistas, existiria apenas um único catolicismo, puro, cristalino, são e verdadeiro, sem nuances, bem delimitado e definido – pelos seus próprios esquemas e padrões mentais ou por documentos da Igreja de séculos passados.

Se nos perguntamos como tais grupos e pessoas conseguem uma tão grande aceitação de suas ideias, vemos que a “autoridade digital” desses católicos fundamentalistas não vem do saber teológico (academia) nem do poder eclesiástico (hierarquia), mas de um saber-fazer e de um poder-fazer midiáticos. Trata-se muitas vezes de pessoas sem qualquer relevância ou reconhecimento nem acadêmico nem eclesiástico, mas que captaram muito bem as lógicas das mídias digitais, dominando suas linguagens e ocupando espaços comunicacionais não raros negligenciados pela própria Igreja. Assim, vão conquistando visibilidade e autoridade sociais e até mesmo eclesiais, atuando em rede como “inquisidores digitais”[5].

Assistimos, atônitos, a uma propagação de uma Igreja paralela digital, que não condiz nem com os tempos (para tais católicos, só vale aquilo que veio antes do Concílio Vaticano II) nem com os lugares (segundo tais grupos, qualquer tentativa de inculturação da fé em expressões não europeias, populares ou periféricas é inconcebível) nem com as pessoas (do ponto de vista desses autodenominados “católicos”, Francisco é um “antipapa” e os bispos brasileiros, simplesmente, “300 picaretas”).

Desse modo, esses católicos se manifestam como verdadeiros hereges, hereges da era digital. Fazem uma “livre escolha” (em grego: hairesis) de aspectos do catolicismo que mais lhes agradam (mesmo que ultrapassados ou até fictícios) e das pessoas mais aptas, segundo eles, para comungar desse pseudocatolicismo. Tudo e todos que não estão de acordo com sua visão de Igreja-seita devem ser excluídos. Tal exclusão, geralmente agressiva e violenta, é comunicada em rede como uma excomunhão (do latim excomunicatio) dos supostos “hereges”, ou seja, de todos aqueles que se desviam desse imaginário eclesial distorcido. Para isso, opera-se uma excomunicação, uma comunicação de que a comunicação alheia (do papa, dos bispos, dos demais católicos) deve cessar ou não deveria nem existir. Trata-se de comunicação voltada ao silenciamento ou ao aniquilamento de outra comunicação, para que o discurso próprio se torne único e dominante[6].

Darío Mollá[7]aponta também como um dos motivos que leva a esse desentendimento e falta de diálogo as carências que existem em algo tão importante para a espiritualidade cristã como é o discernimento. E isso se observa em todos os níveis, desde a hierarquia e pessoas provenientes da academia como no povo simples de Deus. Incapazes de descobrir em meio ao ferrenho combate quem tem razão, então a saída é unir-se a um dos dois lados e começar também a atacar o outro.

O fato é que, em uma Igreja polarizada e em conflito, são raros aqueles e aquelas que estão dispostos a um diálogo autêntico, capaz de superar as divisões. São raros os espaços de encontro entre pessoas e grupos de distintas sensibilidades. Ocultos na rede, cada um se refugia nos seus grupos afins, como fortalezas inexpugnáveis, de onde bombardeia os “inimigos”, protegido por detrás de suas trincheiras virtuais. Falam pelas costas, mas não há diálogo verdadeiro.

Falta contato real, convivência, abertura para o diferente. No interior da Igreja, custa muito elaborar os conflitos, em todas as instâncias. Evidentemente, eu não entro em conflito com os que mantenho longe e com quem não vejo. Essa atitude de querer fazer de conta que o conflito não existe, já fora captada pelo Papa Francisco na sua “Alegria do Evangelho”:

“Diante do conflito alguns simplesmente o ignoram e seguem adiante como se nada acontecesse, lavam as mãos para poder continuar com sua vida. Outros entram de tal maneira no conflito que ficam prisioneiros dele, perdem horizontes, projetam nas instituições as próprias confusões e insatisfações e assim a unidade se faz impossível. Mas há uma terceira maneira, a mais adequada, de se situar diante do conflito. É aceitar sofrer o conflito, resolvê-lo e transformá-lo em um degrau de um novo processo. “Felizes os que trabalham pela paz!” (Mt 5,9). (Evangelii Gaudium (Alegria do Evangelho) 227).

O problema é que poucos parecem estar dispostos a fazê-lo. O trabalhar pela paz vem sendo superado pelo discurso do ódio, pela tentativa de eliminar o outro que se opõe ao meu modo de ver, pensar e agir.

Precisamos engrossar as fileiras dos que promovem a paz! Sermos capazes de nos abrir ao diálogo, buscar o encontro, promover a reconciliação. Deixar o que pensa diferente expor o que pensa, sem preconceitos, mesmo que não concordemos com o que diz. Não supor em nenhum momento que todos entendemos o mesmo ao tocarmos os temas principais de nossa fé. Por acaso a palavra “pobreza” tem as mesmas conotações para todas as sensibilidades eclesiais? “Oração” significa o mesmo para todos os grupos cristãos? Certamente não.

Se não corremos o risco de procurar ao menos escutar o que o outro está dizendo, só se produzirão mal-entendidos. E o caminho para uma reconciliação que permita a comunhão seguirá fechado.

Alfredo Sampaio Costa SJ é professor e pesquisador no departamento de Teologida da FAJE

 

[1] Inspiramo-nos no excelente artigo de Moisés Sbardelloto, “Vejam como não se amam!”: intolerância intracatólica e antievangelização em rede. Vida Pastoral 340 (2021) 24-31.

[2] José I. GONZÁLEZ FAUS, As 10 Heresias do Catolicismo Atual, Petrópolis: Vozes 2015,9-10.

[3] Moisés SBARDELLOTTO, “Vejam como não se amam!”: intolerância intracatólica e antievangelização em rede. Vida Pastoral 340 (2021) 25.

[4] KUZMA, Cesar. Youtubers ou inquisidores, profetismo ou difamação: desafios para a evangelização no universo cultural nas redes sociais. IHU On-Line, 25 jan. 2019. Disponível em: <http://www.ihu.unisinos.br/586308>. Acesso em: 10 de setembro de 2022.

[5] Moisés SBARDELLOTTO, “Vejam  como não se amam!”: intolerância intracatólica e antievangelização em rede. Vida Pastoral 340 (2021) 28.

[6] Moisés SBARDELOTTO,  “Excomunicação: novos modos de intolerância intrarreligiosa em tempos de midiatização digital”. In: CUNHA, M. N.; STORTO, L. J. (Org.). Comunicação, linguagens e religiões: tendências e perspectivas na pesquisa. Londrina: Syntagma, 2020. p. 151-180.

[7] No artigo La difícil alteridad en la iglesia, Manresa 86 (2014) 149-158.

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