Washington Paranhos, SJ
Este pequeno texto centra-se na liturgia ou, mais propriamente, na “vida litúrgica” das nossas comunidades. Trata-se de uma experiência particularmente importante, que merece ser levada em profunda consideração pelos valores que carrega e por algumas das dificuldades que traz consigo hoje. O trabalho realizado na tradução da Terceira Edição brasileira do Missal Romano e o que se pode esperar agora com o seu uso oferecem um claro ponto de chegada para reflexão. No entanto, é oportuno, pelo menos inicialmente, manter o amplo horizonte sobre a liturgia em geral.
A ancoragem ao Missal Romano recorda-nos, em todo o caso, que o ponto de referência para o nosso trabalho é inevitavelmente dado pela renovação desejada para a Igreja do nosso tempo pelo Concílio Vaticano II. Recentemente, o Papa Francisco recordou que “a reforma litúrgica é irreversível”. Por conseguinte, nesse caminho, pode e deve mover-se o caminho da pastoral litúrgica, que por sua vez é necessário para realizar os valores compreendidos e indicados pelos Padres conciliares e para desenvolver ainda mais uma “boa vida litúrgica” na Igreja do nosso tempo. A atenção a esse objetivo pode, sem dúvida, reforçar e prolongar o compromisso que as igrejas no Brasil no seu conjunto já manifestaram nas últimas décadas.
Os motivos para uma renovada atenção à liturgia
Em primeiro lugar, é útil recordar e esboçar, ainda que brevemente, as principais razões pelas quais somos chamados a dar uma atenção nova e vigilante à liturgia.
O Concílio convidou-nos a considerar e a colocar a liturgia no centro da vida da Igreja. Fê-lo afirmando que a liturgia não esgota toda a ação da Igreja, nem é a primeira das várias ações, mas não deixa de ser “o cume para o qual se dirige a ação da Igreja e, ao mesmo tempo, a fonte donde emana toda a sua força” (SC 10). A posição da liturgia na vida cristã é especial, que deriva da presença especial de Cristo e da relação vital com Deus que nela se realiza (cf. SC 7), mas também pelo particular envolvimento da Igreja na celebração (cf. SC 26). Esta é “a obra de Cristo e da Igreja” e todos os que participam na celebração são tornados participantes nesta relação. Assim, a liturgia insere a vida da Igreja e de cada crente numa “comunhão de presenças”, dom do Espírito, do qual a nossa vida cristã tira força e sentido. Somos chamados a redescobrir esta verdade, desenvolvendo a ligação da liturgia com toda a vida cristã, no quadro de uma “pastoral integrada” que respeite a especificidade da liturgia e, ao mesmo tempo, a conecte com as experiências fundamentais da vida.
Certamente, a promulgação e o uso da Terceira Edição brasileira do Missal Romano oferecem uma preciosa oportunidade para nos concentrarmos não só no nosso modo de celebrar a Eucaristia, mas também no seu valor para a vida da Igreja. Talvez o maior desafio esteja em viver a liturgia eucarística como “fonte”. A celebração da Eucaristia dá forma simbólica a um modo de ser como Igreja e como cristãos que é gerado pela graça da entrega de Cristo por nós. Esse modo de ser, vivido pela graça na Eucaristia, é capaz de inspirar e irradiar no modo de ser da vida quotidiana. O Missal Romano, devidamente conhecido e praticado, pode tornar-se “gerador” de uma identidade eclesial que tem Cristo e o seu Evangelho como critério fundamental. Não se deve esquecer que, presumivelmente, uma nova edição brasileira da Liturgia das Horas também terá de ser preparada em breve, o que nos ajudará a concentrar-nos na experiência da oração eclesial.
Não podemos esconder que um motivo urgente de preocupação com a liturgia é dado por uma dificuldade que se manifesta claramente em nossas assembleias na forma de uma “desafeição” pela liturgia. A queda nos números, especialmente na faixa etária juvenil, é apenas um sinal externo de um desconforto que muitas vezes evidencia a aridez da experiência que temos em celebrar. É verdade que nem tudo depende da prática litúrgica; de fato, a crise atual da vida de fé se reflete na liturgia, mas também vice-versa. No entanto, sem abordar uma discussão mais precisa das causas, é útil aproveitar a oportunidade e o desafio que esta situação nos apresenta. Realmente, a “desafeição” pela liturgia pode ser a reação correspondente a uma prática litúrgica que não consegue tocar nossas sensibilidades de forma saudável (é anestésica) e ressoar no nível emocional (não é afetiva). Trata-se, objetivamente, de uma pesada limitação de nossas liturgias, que as impede de serem “significativas” para os celebrantes, isto é, a expressão de uma relação valiosa da qual podemos extrair força e significado. O risco de cair numa espécie de culto da emoção não deve impedir-nos de recuperar a profundidade estética da ação litúrgica e, com ela, a sua qualidade espiritual. É reconfortante e encorajador para a ação pastoral que esta situação de “crise de participação” seja acompanhada de forma coerente pela necessidade e busca de uma maior “qualidade” das celebrações. Isto emergiu também por ocasião do Sínodo sobre Os jovens, a fé e o discernimento vocacional, do qual emerge que os jovens pedem “propostas de oração e momentos sacramentais capazes de tocar a sua vida quotidiana, com uma liturgia dinâmica, autêntica e jubilosa” (Documento Final, 51).
Essa perspectiva pastoral é também apoiada por uma compreensão mais profunda do valor do agir ritual, que deve ser recuperado para dar confiança à prática celebrativa. O rito é composto por um enredo ordenado e pré-ordenado de ações, que utilizam simbolicamente toda a pluralidade de linguagens das quais nosso corpo nos torna capazes da experiência. Na celebração falamos não só com palavras, mas ainda mais com gestos, relações, sinais, espaços, músicas, cores, vestes, silêncio… Na realidade, a liturgia não é feita para transmitir conteúdo doutrinário (embora essa função não esteja excluída), mas para fazer entrar no mundo da fé através de comportamentos rituais e atitudes que valorizam a pessoa em sua totalidade: corpo, afetos, mente. O que está em jogo é a “vivência ritual” da fé, isto é, uma memória viva e vivificante d’Aquele que a faz nascer.
Por isso, o agir ritual intercepta a experiência do fiel em níveis muito diferentes e profundos, envolvendo as dimensões corpórea, emotiva, afetiva, relacional… até à dimensão intelectiva. É necessário que os gestos rituais tenham uma profundidade que possa atingir todos esses níveis e dimensões. Nesta perspectiva, uma prática celebrativa que valoriza com confiança a componente do agir ritual assume um valor estratégico, uma vez que pode ser assumido por pessoas muito diferentes (em termos de cultura, história, experiência de fé…) através de múltiplas formas de envolvimento pessoal, e de reunir todos na expressão comum de um rito que dá forma à fé da comunidade. É instrutivo ver como isso acontece no campo da piedade popular, com uma espontaneidade que nos lembra como a ação ritual também pode ser um recurso para a liturgia com a qual se pode expressar a fé e com a qual se pode dizer-se crente.
As razões que acabamos de referir encorajam-nos a retomar o caminho pastoral de aprofundamento dos valores inspiradores da reforma litúrgica conciliar, que neste tempo constituíram e devem tornar-se cada vez mais a referência fundamental para a renovação litúrgica. Muitos desses valores foram retomados e relançados nas últimas décadas pelo magistério papal e pelos documentos da CNBB. Podemos recordar aqueles que estão ligados à estrutura básica do documento conciliar: o forte chamado a uma ação litúrgica entendida como obra de Cristo e da Igreja (SC 7); o vínculo entre o anúncio (Palavra) e a atualização (Celebração) da salvação (SC 6; 33; 35); a natureza eclesial e participativa da liturgia e de toda celebração (SC 14; 26-27; 41-42); a adaptação da liturgia à índole dos povos, que se traduz num processo de inculturação do qual o Brasil não está de modo algum isento (SC 37-40). Nessas linhas básicas, a nova edição do Missal Romano prossegue com a continuidade de textos e gestos o caminho já iniciado, ao mesmo tempo que procura refinar e aprofundar as indicações da reforma litúrgica e os documentos de execução dela resultantes.
Washington Paranhos, SJ é professor e pesquisador no departamento de Teologia da FAJE