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Religião, Laicidade e Democracia: Cenários e Perspectivas

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Geraldo De Mori SJ

“Dai a César o que é de César e a Deus o que é de Deus” (Mt 22,21)

A Sociedade de Teologia e Ciências da Religião (SOTER) realiza, entre os dias 12 e 16 de julho, seu 33º Congresso Internacional. O tema escolhido, “Religião, Laicidade e Democracia: Cenários e Perspectivas”, é o mesmo previsto para o congresso que deveria ter se realizado em 2020, mas que não pôde acontecer por causa da pandemia e está sendo realizado nesses dias em formato remoto. Como acontece a cada ano, esse evento da SOTER atrai centenas de participantes, boa parte, constituída por alunos/a e professores/as de Teologia e Ciências da Religião do Brasil e do exterior, mas também por pessoas envolvidas em atividades pastorais e por pesquisadores/as de outras áreas.
Fundada em 1985, a SOTER foi por muitos anos a principal associação de teólogos/as do Brasil. Seus congressos, realizados na Casa de Retiros São José, em Belo Horizonte, atraíam a cada ano os/as principais teólogos/as e cientistas da religião do país. Sempre em sintonia com as questões candentes da sociedade e do mundo religioso nacional, eles buscavam pistas para pensar a fé e o lugar da religião nas próprias comunidades eclesiais e nos distintos âmbitos da vida nacional. Aberta ao diálogo ecumênico, inter-religioso e interdisciplinar, a SOTER contribuiu para fazer da convicção religiosa um lugar fecundo de respeito às diferenças e um lugar portador de uma palavra lúcida de esperança, que abria horizontes novos para quem era movido pela fé religiosa e para aqueles/as que se interessavam pelo estudo do lugar da religião na sociedade.

O reconhecimento civil da teologia, no final da década de 1990, e o crescimento, no mesmo período, da pesquisa teológica e das ciências da religião no âmbito da pós-graduação, transformaram os congressos da SOTER num dos principais eventos da área no país. Seu perfil tornou-se mais acadêmico e, simbolicamente, isso se expressou na migração dos congressos da SOTER para o campus da PUC Minas. Paralelamente, outras associações foram criadas e também passaram a realizar congressos reunindo pesquisadores/as das diversas disciplinas teológicas ou das ciências da religião. As principais instituições de ensino e pesquisa também passaram a organizar seus eventos, o que fez com que nesse mesmo período a teologia ganhasse um perfil mais acadêmico.

Segundo o teólogo norte-americano David Trace, a teologia deve dialogar com três públicos: a academia, a igreja e a sociedade, podendo ora privilegiar um, ora outro, mas sem ignorar nenhum dos três. Cada um desses públicos contempla um tipo de disciplina teológica. Assim, a disciplina da academia é a teologia fundamental, a da igreja é a teologia sistemática e a da sociedade é a teologia prática. Se se aplica esse raciocínio para o percurso feito pela SOTER, pode-se dizer que quando ela nasceu, deu mais ênfase à teologia prática, a partir do final dos anos 1980, começou a voltar-se, sobretudo, para a teologia sistemática, e, nos últimos 20 anos, privilegiou mais a teologia fundamental.

O tema do 33º Congresso da SOTER, seguindo a lógica proposta por Tracy, está, portanto, voltado, sobretudo, para o público sociedade. Na verdade, grande parte dos temas propostos nos congressos dos últimos 20 anos da entidade contemplam sempre as distintas questões que emergem na sociedade brasileira nesse período, em fidelidade à própria maneira de fazer teologia nas últimas décadas, que é a do diálogo com a modernidade e a pós-modernidade. Trata-se de “dar as razões da própria esperança” (1Pd 3,15), tarefa que possui, dois grandes significados. Um deles, é o de ajudar quem crê ou quem busca o sentido radical da existência, a melhor entender aquilo que crê ou a compreender aquilo que é o objeto de sua busca incansável. Outro, é o de desconstruir falsos sentidos ou razões aparentes associadas à própria fé, mas que muitas vezes a falseiam ou a transformam no oposto daquilo que deveria ser. Na bíblia hebraica, essa tarefa era exercida pelos profetas, que desmascaravam as falsas seguranças em um divino que não era o Deus ao qual muitos prestavam culto, ignorando seus apelos éticos.

O Brasil vive um dos momentos em que a religião tem se tornado álibi para os interesses mais escusos e perversos, que negam aquilo mesmo para o qual elas existem. Com efeito, nos últimos anos, a denúncia feita pelo apóstolo Paulo na carta aos Romanos, “por vossa causa, o nome de Deus é blasfemado entre todos os povos” (Rm 2,24), evocando o “pecado do povo eleito”, é, provavelmente, a denúncia feita a multidões de brasileiros/as que se dizem cristãos, seja do seguimento evangélico ou católico. Como é possível um representante de uma igreja que se diz evangélica entrar num esquema de corrupção para compra de vacinas que nem existem? Como é possível o mandatário de uma nação, cuja lei magna garante a “laicidade”, querer impor à suprema corte um “ministro terrivelmente evangélico”, com o apoio e a cumplicidade de setores importantes das próprias igrejas evangélicas? Como alguns representantes da hierarquia católica aceitam se submeter às manipulações dos “donos do poder”, que se utilizam dos símbolos mais sagrados da fé com fins meramente políticos, mas que em sua prática política estão instituindo um regime que mata as liberdades e elimina a vida?

Mais do que nunca a teologia é chamada a pensar mais e a pensar melhor suas duas tarefas: ajudar quem crê ou quem busca o sentido da existência a entender o que crê e o que busca, e desmascarar quem se diz crente, mas coloca no lugar de Deus um ídolo, que exige o sangue de inocentes e não dá vida. Nesse sentido, o congresso da SOTER de 2021 renova a intuição original da própria entidade, que nasceu em uma época sombria da história nacional, a da ditadura militar e a da “transição” para a redemocratização. Sua ação nos “anos de chumbo” ajudou muitos/as cristãos/as a olharem com lucidez o tempo em que viviam, colocando-se ao serviço da vida dos mais vulneráveis. Seu discurso para o “público sociedade” ampliou o horizonte das próprias comunidades de fé, levando-as a se engajarem na defesa da justiça e da democracia. Esse discurso necessita atrair novos ouvidos e corações. Para isso, junto ao “público igreja”, ele deve ajudar muitos/as que se dizem cristãos/ãs a voltarem a Jesus e a seu apelo primeiro: “O reino de Deus está próximo, convertei-vos, crede no evangelho” (Mc 1,15). A palavra lúcida de uma teologia que sabe conjugar o que é constitutivo do crer ajudará todos/as os/as que vivem da fé a discernirem, nas inúmeras investidas que manipulam a fé o e nome de Deus no Brasil, o que realmente é de Deus e o que é de César (Mt 22,21), não absolutizando discursos e práticas que se servem da religião e de seus símbolos mais sagrados para fins políticos, muitas vezes para “blasfemar o nome de Deus” (Rm 2,24). Como diz Jesus, “pelos frutos se conhece a árvore” (Mt 7,16-24).

Geraldo De Mori SJ é professor e pesquisador no departamento de Teologia da FAJE

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