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Repensando a Filosofia na era digital

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Bruno Pettersen

No livro Fedro, de Platão, Sócrates dizia que a busca da verdade só poderia ser feita a partir da oralidade, da troca ativa entre os indivíduos. O aluno de Sócrates, Platão, decidiu escrever seus pensamentos em forma de diálogo, e logo transformou a filosofia naquilo que é hoje: livros e mais livros baseados em uma argumentação descrita em longas e complexas sequências de ideias. O que Sócrates diria da Filosofia baseada em textos? Penso que Sócrates não ficaria nada satisfeito de pensar que todo o debate oral foi retirado da Filosofia, e, assim, denunciaria “esses jovens filósofos”.

Esse problema não é apenas na forma de se apresentar o pensamento, uma vez que o fazer intelectual é alterado pelo meio onde o pensamento é realizado: se a reflexão é realizada na oralidade ou na escrita, não diz respeito apenas à sua divulgação, mas altera o conteúdo daquilo que é dito. Nesse caso, me lembro sempre da expressão do pensador canadense Marshall McLuhan (1911-1980) que dizia que “o meio é a mensagem”, isto é, a alteração do meio de reflexão altera o que se é pensado.

Pensar não é algo feito em abstrato, mas uma performance, seja oral ou escrita, e essa performance altera os caminhos do argumento, a maneira pela qual se busca o consenso e pelo qual o argumento convence. O pensamento na oralidade depende fundamentalmente do corpo, do rosto do outro, dos gestos e, quase sempre, precisa ser mais aberto do que o texto escrito. O texto escrito pode alcançar profundidades e complexidades que a oralidade não consegue, no entanto, não lida tão bem com o outro, onde uma boa quantidade de pensadores escreve ignorando que há mesmo um leitor dando sentido ao que ele está escrevendo. São diferentes formas de pensar.

Nesse sentido, penso que estamos nos arredores de uma nova forma de pensar, que é aquela produzida no interior da internet. À primeira vista, o mundo digital tem gerado um conhecimento mais superficial, gerando apenas uma “sensação de aprendizado” com vídeos de 30 segundos sobre um assunto qualquer. Minha experiência docente nesse contexto digital pós pandêmico tem sido também plural, para dizer o mínimo. É muito difícil  pensar uma luta entre o celular e o professor, em que o docente realmente saia vitorioso: a internet pode ofertar os interesses do indivíduo de modo que nenhuma pessoa jamais poderá, gerando essa sensação de conhecimento. Para além de suprir os interesses pessoais, os conteúdos digitais dão a sensação de que todo o material expresso nesses vídeos pode nos ofertar conhecimento real sobre uma filosofia ou um pensamento.

Não posso me furtar de falar da nossa dependência psicológica da internet: não apenas os alunos, mas os próprios professores têm o celular e a internet constantemente na vida, a ponto de ser bastante provável que você, ou esteja lendo esse texto no celular, ou tenha o celular à mão para uma consulta sobre algo que eu disse aqui. A internet hoje é uma necessidade básica, semelhante à eletricidade. A chamada “economia da atenção”, isto é, a maneira pela qual lidamos com a nossa atenção, também parece ter sido alterada. A forma pelo qual o conteúdo é oferecido, com seus shorts, stories e reels faz com que o nosso acesso à informação seja amplo, com assuntos que nunca veríamos sem a internet, mas com uma profundidade pequena. Temos assim, adultos e jovens com cada vez mais dificuldade de manter longos períodos de atenção sobre apenas um assunto. É nesse cenário que pergunto a você, leitor: a internet, enquanto meio de transmitir o conhecimento, vai alterar a filosofia e o saber para o bem ou para o mal?

Pelo que descrevi acima, o panorama não parece bom, certo? Superficialidade, brevidade, incapacidade de concentração e multiplicidade de assuntos rápidos – tudo isso parece ser uma catástrofe para o saber. Mas, ao mesmo tempo, penso que temos uma novidade na internet como meio de conhecimento, que ainda não experimentamos. Em um certo sentido, a geração anterior está olhando para a internet como Sócrates talvez teria olhado para Platão: jovens desvirtuando o real saber.

A internet como um novo meio, nem exatamente oral, nem totalmente baseado na escrita, tem características de ambos. Como a oralidade na internet é mais breve do que o texto, às vezes breve como uma conversa, às vezes mais longa como uma tarde com amigos ao redor de um assunto. Como o texto, a internet pode chegar a uma quantidade avassaladora de pessoas. Mas, para além disso, quando usada com cuidado, a internet é profundamente democrática, levando histórias breves e curtas sobre a vida de um filósofo como Kant, a pessoas que nunca poderiam ter lido a sua Crítica da Razão Pura. Claro que o conteúdo pode ser breve, mas pelo menos ele apresenta a pessoas que nunca poderiam saber algo sobre Kant, e que, se o indivíduo se interessar, pode acessar mais detalhes e, quem sabe um dia, ler a Crítica. Assim, é um saber que pode ser livre e democraticamente acessado.

Mas isso não quer dizer que a internet gera apenas descrições superficiais. Penso que o melhor “artigo que li” em 2023, foi um vídeo de cerca de 28 minutos sobre o Paradoxo da Teoria dos Conjuntos de Bertrand Russell por Jeffrey Kaplan, intitulado de “Russell’s Paradox – a simple explanation of a profound problem”. O vídeo é como um ótimo artigo, com a explanação do problema, apresentação de exemplos e a posição do próprio autor, mas leva em conta a capacidade de exposição oral do problema e, embora o vídeo seja em sua maioria apenas Kaplan falando, o uso do corpo, da fala controlada, do movimento das mãos, conta como parte da performance e fortalece o argumento quando é necessário. Em tempos sem o Youtube, isso seria impossível.

Penso que a internet tem desvantagens importantes no fazer do conhecimento, mas esse novo meio parece-me ter duas vantagens decisivas: é o meio mais democrático que já vimos na história e é o meio que resgata a força da oralidade na condição humana. Bem, ao invés de um texto, talvez eu devesse ter feito um vídeo ou podcast sobre isso.

Bruno Pettersen é professor e pesquisador no departamento de Filosofia da FAJE

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