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Rezar a vida de Cristo enquanto mistério à luz da exegese histórica

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Alfredo Sampaio Costa SJ

 

Gabino Uríbarri debruçou-se sobre esta questão no seu artigo “El acceso a Jesús en los Ejercicios, la cristología y la exégesis científica”[1].  Recolheremos algumas das questões debatidas por ele, para nos ajudar a compreender melhor como podemos contemplar a vida de Cristo segundo a proposta dos Exercícios, sem desconsiderar a pesquisa histórica sobre quem foi Jesus. Já Bento XVI quando publicou seus volumes sobre a Jesus chamava a atenção para o fato que há livros sobre Jesus que, elaborados a partir da exegese histórico-crítica, não são capazes de nos colocar em conexão com o Jesus real, de ajudar a um verdadeiro encontro com Jesus[2]. Para situar esta questão no marco que nos interessa, daquele que dá os Exercícios, Gabino em primeiro lugar situa como se dá o acesso a Jesus segundo a dinâmica dos Exercícios espirituais de Santo Inácio. Em segundo lugar, recolhe as contribuições mais importantes à cristologia de uma exegese científica de caráter historicista. Em terceiro lugar, indica os limites teológicos deste tipo de acesso científico à história de Jesus. Finalmente, propõe algumas diretrizes para quem dá os Exercícios quanto a essa questão. Oportunamente comentamos o que ele escreve.

 

  1. Natureza do acesso a Jesus nos Exercícios

Os Exercícios não dão a contemplar o relato da vida de Jesus, mas sua vida como “mistério”. Em tempos de Inácio, um mistério era uma representação com imagens que atualizava a palavra de Deus[3]. O exercitante deverá contemplar a cena em questão, “como se estivesse presente à cena” (EE 114). Os mistérios são entendidos como portadores de graça, têm a capacidade de transformar ao sujeito crente, comunicar-lhe uma palavra pessoal de orientação e de salvação. Assim, Cristo Jesus, o Senhor, está vivo e operante na Palavra da Escritura. O contato com a Escritura, com os Evangelhos e os Mistérios narrados é, na verdade, um contato com o Cristo vivo, que atua mediante o Espírito e se comunica ao crente que se esforça em seguir humildemente os passos do método dos Exercícios[4].

Para ilustrar o que isso significa podemos comparar com o que acontece na liturgia. Nela não se recorda uma história passada, veja, carente de sentido, morta e fechada sobre si; mas os acontecimentos que se rememoram se atualizam, fazem-se presentes e contemporâneos, com toda sua força interpeladora e curadora. A contemplação dos mistérios da vida de Cristo proposta nos Exercícios respira deste ar sacramental e litúrgico.

Comentamos no texto passado a Anotação segunda dos EE, sobre o “dar modo e ordem” (EE 2). Gabino acrescenta ainda a respeito do porquê dessa sobriedade por parte de quem expõe a matéria: aduz dois motivos.

O primeiro é porque aquele que dá os Exercícios ao propor os pontos para a oração atua como um sujeito eclesial, que age em nome da Igreja, não meramente em nome próprio. Portanto, deverá se ater ao conteúdo da Escritura tal e como se vive e se entende no seio da comunidade cristã[5], não deixando-se levar por hipóteses que não estejam comprovadas ou opiniões muito pessoais.

Ademais, em segundo lugar, convém considerar o gênero literário em que nos movemos. Dar pontos não é pregar uma homilia, nem tampouco trata-se de uma aula de teologia ou exegese. Aqui se trata de tomar o texto em seu conteúdo de fé dogmático fundamental e propor a quem faz os Exercícios que mergulhe na contemplação do mistério. Através deste meio o Senhor desvelará sua própria verdade e atuará sobre a alma devota (cf. EE 15).

 

  1. Necessidade da exegese científica para a cristologia

Aqui tocamos uma das questões fundamentais para a cristologia e para a dinâmica dos Exercícios Espirituais. Ambas querem proporcionar um acesso correto à pessoa de Jesus. Exegese e teologia: como podem colaborar uma com a outra, respeitando o âmbito de cada uma?

A Comissão Teológica Internacional, em 1979, publicou um texto intitulado “Questões seletas de cristologia”, onde afirma: “Jesus Cristo, que é o objeto da fé da Igreja, não é nem um mito nem uma ideia abstrata qualquer. É um homem que viveu em um contexto concreto. A investigação histórica sobre ele é, pois, uma exigência da fé cristã. Esta investigação não carece de dificuldades, como o demonstram as diversas formulações que ela conheceu no transcurso do tempo”[6].

A exegese científica é absolutamente necessária para a cristologia, que resulta muito enriquecida por ela. O problema se coloca com relação a uma exegese de caráter historicista, isto é, o tipo de exegese que se pergunta pelo que é cientificamente sustentável na história de Jesus contida nas narrativas evangélicas, prescindindo da fé e manejando as ferramentas do método histórico tal como se entende a partir da Ilustração. Este tipo de aproximação, seja na sua vertente histórico-crítica ou sócio-antropológica, é afirmado pela Dei Verbum 12 e pelos documentos da Pontifícia Comissão Bíblica. Ninguém sensato coloca em dúvida isso. Entre suas contribuições, figuram ao menos as seguintes:

1.A Bíblia é um livro escrito por autores humanos, logo é legítimo estudá-la com todos os métodos filológicos, históricos e quaisquer outros que nos permitam aceder melhor ao seu conteúdo. A autoria divina não é às custas de rebaixar, substituir ou negar a autoria humana.

2.No caso da cristologia, a encarnação está em jogo. A cristologia não pode prescindir da história porque Jesus de Nazaré foi um judeu que viveu na Palestina do 1º século de nossa era. A história de Jesus é um ponto relevante para a fé cristã. Prescindir da história seria renegar totalmente o que significa a encarnação.

  1. A fé cristã e a teologia têm que entrar no debate da racionalidade científica da fé. A práxis de Jesus pertence ao querigma. A esse respeito convém notar vários pontos:
  2. a) A história de Jesus das narrativas evangélicas possui uma fiabilidade substancial:

“Os autores sagrados compuseram os quatro Evangelhos escolhendo dados da tradição oral ou escrita, reduzindo-os a sínteses, adaptando-os à situação das diversas igrejas, conservando o estilo de proclamação: assim nos transmitiram sempre dados autênticos e genuínos acerca de Jesus, tirados de sua memória ou do testemunho dos que “assistiram desde o princípio e foram ministros da palavra”, escreveram-no para que conheçamos a “verdade” do que ensinavam (cf. Lc 1,2-4)” (Dei Verbum 19).

  1. b) Essa história é portadora de revelação. Uma vez assegurada a continuidade básica em seus traços principais entre as narrativas evangélicas e a verdade sobre Jesus de Nazaré, tais traços resultam de uma grande importância teológica. Pois nós cremos que este Jesus, que atuou e se comportou tal como os evangelhos nos relatam, Deus estava presente de um modo especial e extraordinário, até o ponto que era o Filho de Deus feito carne entre nós, que era “Emmanuel” = Deus conosco (Mt 1,23). Esta história forma parte muito qualificada da revelação de Deus, da revelação de seu rosto e do modo como nos salva. Além do mais, esta história nos manifesta o modo como Deus quer ser servido, caminho que conduz os homens a Deus e à divinização.
  2. c) Esta história forma parte do querigma. A história é a chave para identificar a Jesus: suas ações e seu ensinamento o definem, identificam-no. Esse mesmo Jesus de Nazaré galileu crucificado é o ressuscitado, o exaltado, aquele que está sentado à direita de Deus, o Kyrios-Filho de Deus. Esta história adquire toda sua densidade posta em correlação com a fé pós-pascal da comunidade.
  3. d) Esta história é um marco hermenêutico. A confissão da divindade de Jesus de Nazaré tem uma ancoragem histórica e narrativa a partir de onde é interpretada.
  4. e) Essa história recria a Igreja. Esta história tem também uma importância especial como memória à qual a Igreja é devedora e que tem que cultivar continuamente. Houve quem definiu a Igreja como uma comunidade de memória (J.B. Metz): memória onde a vida de Jesus ocupa um lugar singular, junto com o memorial que Ele mesmo deixou (a eucaristia). Toda renovação eclesial em profundidade passa por uma volta a Jesus, à simplicidade e radicalidade de Jesus e de sua história.

 

  1. Limites da exegese meramente histórica para um encontro pessoal com o Cristo

“Não se acede plenamente à pessoa e à obra de Jesus se não se evita dissociar o Jesus da história do Cristo tal como tem sido objeto da pregação. Um conhecimento pleno de Jesus Cristo não pode ser obtido a não ser tendo em conta a fé viva da comunidade cristã que sustenta esta visão dos fatos”[7]

Somente nos atendo à investigação histórica sobre Jesus Cristo nossa fé não se sustenta, pois esta contribuição, embora imprescindível, não pode provocar uma adesão de fé nem o reconhecimento que esse Jesus é o Filho de Deus. O testemunho apostólico quer nos colocar em contato com Jesus, com um Jesus vivo, que seguia vivo para estes autores e lhes falava de suas vidas e problemas. Inácio percebeu isso de maneira clara, e articulou a contemplação dos Mistérios da Vida de Cristo para que pudesse proporcionar um contato com o Jesus vivo, para conhecê-lo, amá-lo e segui-lo e, a partir da sua história, entender em profundidade sua obra e pessoa. A relação interpessoal com Jesus e a adesão de fé à sua pessoa é fundamental para entendê-lo. A aproximação historicista não faz justiça à peculiaridade da Escritura como livro inspirado, pois a toma e a estuda com a mesma metodologia que seria válida para qualquer outro texto da antiguidade. Ao tomá-lo assim, não leva em conta nem a sua unidade, que se deve a uma leitura cristológica a partir da fé, nem seu caráter inspirado (o Espírito com o qual foi escrita), nem que a Igreja é o contexto hermenêutico de leitura desse livro, através da Tradição e do Magistério[8].

 

  1. Concluindo: Algumas orientações para aquele que dá os Exercícios

– É conveniente uma boa formação exegética e teológica por parte de quem dá os Exercícios na hora de propor “o fundamento verdadeiro da história” (EE 2).

– Ter o cuidado de considerar bem o auditório e sua formação teológica e exegética, não querendo apresentar “novidades exegéticas”, mas sim atendo-se à pesquisa mais segura.

– Finalmente, a Escritura é um livro no qual a Igreja, com a ajuda do Espírito Santo, reconhece a sua fé. A leitura que o exercitante faz é tipicamente espiritual. Convém que esse sentido não vá contra o sentido literal que a exegese mais científica custodia. Tais elementos de caráter mais espiritual se podem sugerir ao dar os pontos. Pois, em definitivo, serão o Espírito a fazer de Cristo Ressuscitado nosso contemporâneo e nosso Senhor (cf. 2 Cor 3,6).

Você tem estado atento a estas questões ao dar Exercícios ou acompanhar pessoas?

 

Alfredo Sampaio Costa SJ é professor e pesquisador no departamento de Teologia da FAJE

[1] Publicado na revista Manresa 82 (2010) 355-367.

[2] J. RATZINGER – BENEDICTO XVI, Jesús de Nazaret. Primera parte: Desde el Bautismo a la

Transfiguración, Madrid 2007: La esfera de los libros, 7-10.

[3] J. GUEVARA, “Misterios de la vida de Cristo”, em: Diccionario de Espiritualidad Ignaciana, Bilbao/ Santander: Mensajero/ Sal Terrae 2007, vol. II, 1250.

[4] Gabino URÍBARRI, El acceso a Jesús en los Ejercicios, la cristología y la exégesis científica, Manresa 82 (2010) 356.

[5] Cf. G. URÍBARRI, Exégesis y teología según el Sínodo sobre la Palabra de Dios, Estudios Eclesiásticos 84 (2009) 41-93.

[6] Comissão Teológica Internacional, “Cuestiones selectas de cristología” (1979) em, ID., Documentos 1969-1996, ed. por C. POZO, Madrid: BAC 1998, 219-242, aqui I,A.1.

[7] Comissão Teológica Internacional, Cuestiones selectas de cristología (1979) I,B,2.

[8] Gabino URÍBARRI, El acceso a Jesús en los Ejercicios, la cristología y la exégesis científica, Manresa 82 (2010) 364-365.

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