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Rupturas instauradoras

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“Eis que faço uma coisa nova, agora sairá à luz; porventura não a percebeis?” (Is 43,19).
Geraldo De Mori SJ

Há exatos 100 anos, entre 13-17 de fevereiro de 1922, no Teatro Municipal de São Paulo, um grupo de artistas e intelectuais realizou uma série de atividades, com conferências, declamações de poesias, apresentações musicais, exposição de pinturas, que provocaram vivas reações do público, pelo caráter inovador e transgressivo, que rompia com os padrões estéticos então em vigor. O que ocorreu na Semana já tinha sido antecipado em diversas cidades do país, com manifestações artísticas ou publicações de obras literárias em nítida descontinuidade com o modelo vigente, que na poesia era o parnasiano, mas o evento de São Paulo tornou-se o símbolo do que Michel de Certeau, em sua teoria da historiografia, denominou como “ruptura instauradora”, tornando-se referência contínua para se pensar os processos que dizem “o que faz o brasil, Brasil” .

De fato, enquanto tal, a Semana poderia ser vista como um fiasco ou um fracasso. No entanto, o que nela foi realizado, a saber, manifestações de transgressão estética num espaço simbólico no qual se reuniam artistas, intelectuais e a elite da cidade que conhecia uma das maiores mutações no mundo, e como depois ela foi recebida e interpretada, podem ser vistos como sinais anunciadores de algo totalmente novo. No mesmo ano em que foi realizada, Mário de Andrade, um de seus mentores, publicou Pauliceia desvairada, coletânea de poesias em ruptura total com o modelo vigente. No mesmo ano, na então capital federal, Rio de Janeiro, sob a liderança de Jackson de Figueiredo, um grupo de leigos católicos fundava o Centro Dom Vital, ao qual será associada a revista Ordem, criada um ano antes, que terão grande influência na vida intelectual do país, podendo, sob muitos pontos de vista, serem vistos como espaços de diálogo entre catolicismo e modernidade. Anos depois da Semana, Oswald de Andrade, outro de seus promotores, escreveu o Manifesto da Poesia Pau-Brasil (1924) e o Manifesto Antropófago (1928), além de ter fundado a revista de Antropofagia (1928). Nesse mesmo ano, Mário de Andrade publica Macunaíma, o herói sem nenhum caráter. Essas duas obras de 1928, o Manifesto e Macunaíma, podem ser vistas como as principais metáforas do esforço modernista de dizer o enigma do Brasil e de sua gente.

As duas obras são marcadas por provocação e transgressão. Ao erigir a antropofagia como a “única coisa que nos une”, conforme declara Oswald de Andrade, e ao promover um “herói sem nenhum caráter” como a encarnação do brasileiro, como o faz Mário de Andrade, os dois dos principais protagonistas da Semana introduzem na história das ideias do país a ruptura como lugar para pensar sua identidade e destino. Sob muitos pontos de vista, os conceitos e imagens propostos nessas duas obras deram origem a muitos movimentos, tendências e modas artísticas, culturais e intelectuais nos últimos cem anos, mas não chegaram a nenhuma síntese, pois o Brasil de 2022 continua desafiando todos os seus intérpretes, e, como diz Tom Jobim, “não é para principiantes”.

Que interesse a ideia de “ruptura”, presente nas metáforas da “antropofagia” e da ausência de “caráter”, como as propõem dois dos principais protagonistas da Semana, pode ter para a fé cristã e a teologia cem anos depois desse evento? O primeiro, talvez, seria os sentimentos que essas metáforas provocam. De fato, nada pode ser mais chocante do que uma identidade associada a um ato tão terrível, como a antropofagia, ou à ausência daquilo que é constitutivo da própria existência, como o caráter, em sua dimensão moral e existencial. Contudo, como mostra Aristóteles na Poética, a propósito da tragédia, em geral ela suscita o terror e a piedade, mas sua intenção é provocar a catarse, ou seja, a purificação dessas emoções. Sob certo sentido, as metáforas de Oswald de Andrade e Mário de Andrade, embora chocantes e desestabilizadoras (terror e piedade) suscitaram ao longo dos últimos 100 anos uma série de “catarses” na reflexão sobre a brasilidade, seja do ponto de vista artístico e cultural, seja do ponto de vista da “inteligência” da própria identidade nacional. E isso teve reverberações no âmbito da fé.

Não é o caso de retraçar aqui as releituras feitas nos últimos cem anos dos impactos da modernidade e das metáforas que buscaram traduzi-los no âmbito religioso e cristão. Importa, talvez, entender o sentido lato dado às duas metáforas pelos próprios autores, e perguntar-se como, hoje, o cristianismo deixa-se ou não fecundar por elas.

A antropofagia, da qual falava Oswald de Andrade, referia-se ao ritual dos Tupinambás, descrito em relatos de viajantes e missionários do início da colonização. Mais que seu caráter “selvagem”, “bárbaro” ou “hediondo”, o que o autor modernista valorizou foi o ritual antropofágico, no qual, só eram sacrificados os valentes guerreiros inimigos, derrotados após uma luta. Os que participavam do ritual acreditavam que ao alimentarem-se do guerreiro sacrificado absorveriam sua força, coragem e valentia. Era uma maneira de acolher em si as principais qualidades do inimigo. No fundo, tratava-se de uma forma de relacionar-se com a alteridade, não a eliminando simplesmente, mas dela se apropriando, acolhendo em si o que ela tinha de mais característico e próprio.

Com relação à ausência de caráter, é interessante notar o percurso feito por Macunaíma, uma retomada da história da constituição do Brasil, com as muitas culturas e raças que deram origem à sua identidade, ainda em estado de construção. Ao jogar com a questão da identidade, o autor retoma a discussão, já em curso desde o século XIX, após a independência, sobre quem é o Brasil e os brasileiros, optando pela tese da “ausência de caráter”, no sentido de que essa ausência, mais que uma fraqueza, era a própria condição de possibilidade de relação com as várias alteridades que a constituíam.

As discussões suscitadas por essas duas obras ao longo do último século, e as inúmeras formas de as traduzir em obras artísticas e conceituais, são constitutivas de sua riqueza simbólica. A fé cristã e a teologia também participaram, sob muitos pontos de vista, dos esforços de tradução do que é ser discípulo e discípula de Jesus tendo em conta o Brasil e os brasileiros. Para além do catolicismo oficial e das demais confissões que se declaram cristãs, muitas formas de acolher o mistério de Jesus de Nazaré, confessado como Cristo, Senhor e Filho de Deus, em seu permanente caráter de “escândalo” e “loucura” (1Cor 1,23), foram desenvolvidas ao longo dos últimos cem anos, grande parte delas, tendo já sido o resultado de um processo de inculturação iniciado no século XVI. O que chama a atenção de todas essas formas é justamente a capacidade de muitas delas de acolher, num processo também “antropofágico”, o que de melhor existe nos sujeitos que creem, ou a capacidade de não se fixarem em formas fixas e esclerosadas, que não levam em conta os “sinais dos tempos”, perdendo a oportunidade de acolher o que o mistério do Verbo encarnado continuamente vem realizar, através da ação do seu Espírito: “eis que faço novas todas as coisas” (Ap 21,5).

Geraldo De Mori SJ é professor e pesquisador no departamento de Teologia da FAJE

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