Geraldo De Mori SJ
“um dos soldados abriu-lhe o lado com uma lança e, imediatamente, saiu sangue e água” (Jo 19,34)
Desde 1856 a Igreja católica introduziu no seu calendário litúrgico a Solenidade do Sagrado Coração de Jesus, celebrada na segunda sexta feira depois da festa do Corpus Christi. As origens desta festa remontam à Idade Média, com a devoção à humanidade de Cristo, especialmente à sua paixão, centrais nas visões místicas de Santa Lutgarda (+1246) e Santa Gertudes (+1302). Somente a partir do século XVII, porém, com São João Eudes (+1670) e Santa Margarida Maria Alacoque (+1690), a devoção ao Coração de Jesus ganhou maior amplitude, dando origem a congregações e movimentos cuja espiritualidade era o Coração de Jesus. Com a instituição da Solenidade, no final do século XIX, ela tornou-se, sobretudo nos países europeus, o símbolo de uma identidade católica que se sentia acuada e na defensiva contra a razão moderna. No Brasil, a piedade do Coração de Jesus difundiu-se através do Apostolado da Oração e das ordens religiosas centradas na espiritualidade dos corações de Jesus e Maria. A inauguração, em 1931, da estátua do Cristo Redentor, no Corcovado, Rio de Janeiro é expressão disso.
A espiritualidade do Coração de Jesus, tida por muitos como antimoderna e por outros como própria de idosos, sobretudo de mulheres, uma vez que os grupos do Apostolado da Oração são em muitos lugares compostos por esse tipo de público, recorda, como indica o evangelho da Festa do Coração de Jesus no Ano B, que o lado aberto do qual jorra sangue e água (Jo 19,34) é a máxima expressão do sim ou do amém de Deus para a humanidade e do sim ou do amém da humanidade para Deus (2Cor 1,19-20). A teologia posterior associou a água ao batismo e o sangue à eucaristia. Na bíblia, o termo “coração” (= leb, em hebraico) é um dos mais utilizados para falar do ser humano (598 vezes na forma leb e 253 na forma lebad). Foi traduzido em grego por kardía e em latim por cor. É um dos termos mais frequentes para referir-se ao ser humano, ao lado dos termos basar (= carne), nefesh (= alma) e ruah (= espírito), possuindo uma série de significados. Na esfera emotiva, designa o sentimento de angústia, o caráter, o temperamento, a alegria, a dor, a coragem, podendo também significar ânimo. Indica igualmente o sujeito de um desejo. Enquanto sede de emoções, pode ainda indicar o pronome pessoal. Em alguns casos, possui funções intelectuais, como a capacidade de conhecer, a razão, a consciência, a recordação, o saber, a reflexão, o juízo, a orientação. Todos esses significados o associam à vontade e à decisão.
A espiritualidade do Coração de Jesus, como acima foi indicado, esteve associada no início à redescoberta da humanidade de Cristo, ganhando, a partir do século XVII, o sentido soteriológico de “reparação” com relação à ingratidão com a qual a humanidade retribuía o dom da vida do Filho de Deus por sua salvação. A renovação da teologia do século XX, as descobertas das diversas “buscas do Jesus da história”, as novas formas de viver a fé a partir do Concílio Vaticano II, entre outros fatores, levaram à reinterpretação profunda de muitas devoções, dentre as quais a do Sagrado Coração. O Apostolado da Oração, por exemplo, tem vivido uma nova etapa de sua histórica, tornando-se a Rede Mundial de Oração do Papa, mantendo a intuição central que lhe deu origem, mas repensando-a em novos termos, associando a “reparação” não somente a uma possível ofensa ao Divino Coração, mas também a tantas situações pelas quais passa a humanidade, como a fome, as guerras, o problema das migrações, as terríveis injustiças.
Dois episódios ocorreram nos dias que precederam a Festa do Coração de Jesus em 2022: 1. O desaparecimento, no dia 5 de junho, do indigenista Bruno Pereira e do jornalista britânico Dom Phillips, assassinados no vale do Javari, perto de Atalaia do Norte, AM, tendo seus corpos esquartejados, queimados e enterrados, encontrados somente no dia 13 de junho; 2. O assassinato, no dia 20 de junho, dos padres jesuítas mexicanos Javier Campos Morales, de 79 anos, e Joaquín César Mora Salazar, de 81 anos, na igreja em que se encontravam, na região da serra da Tarahumara, estado de Chihuahua, México, após terem ajudado uma pessoa que fugia de um grupo armado. O que esses terríveis episódios têm a ver com a Solenidade do Sagrado Coração de Jesus?
O “discípulo amado”, que “viu” do coração aberto do Jesus jorrar “sangue e água”, dá seu “testemunho” e afirma que ele é “verdadeiro”, para que os que o escutarão saibam que ele diz a “verdade” e que que também cheguem a crer (Jo 19,34-35). De uma cena que pode ser vista como “perversa”, a saber, transpassar o coração de um condenado morto numa cruz, os olhos de quem sabe ver além dos acontecimentos enxergaram algo mais: “sangue e água”. Como acima foi dito, a tradição da Igreja associou esses elementos ao batismo (água) e à eucaristia (sangue), dos quais brotam respectivamente a vida nova e o sentido mais profundo da existência, o dom de si até à última gota de sangue, na entrega da vida por amor. Como não associar o acontecido no vale do Javari e na serra Tarahumara ao evento do Calvário? Certamente o dom da vida de Jesus na cruz é único, feito, como diz a carta aos hebreus, “uma vez por todas” (Hb 10,10), portanto, irrepetível. Porém, Paulo afirma aos colossenses “completar em sua carne o que falta à paixão de Cristo” (Cl 1,24). Estaria ele dizendo que sua vida entregue ao ministério do evangelho tem caráter salvífico? Certamente não, no sentido que tem o dom da vida de Cristo, que é único por sua “excelência” e expressividade, sendo por isso mesmo “definitivo” (= escatológico). Mas o dom da vida de Jesus é revelação do significado mais profundo da existência humana: amar com tanto amor, a ponto de ser capaz de entregar a vida até que dela jorre “sangue e água”.
Nesse sentido, Bruno e Dom Phillips, em seu engajamento na defesa dos povos originários da Amazônia e, junto com eles, daquela região tão vital para o presente e para o futuro da vida no planeta, tiveram seu sangue misturado à imensidão das águas do rio Javari. Sua entrega é um testemunho para o mundo de uma capacidade única de esquecimento de si e de despossessão da própria vida, repetindo, sem dúvida alguma, em pleno século XXI, o mesmo que o Nazareno vivenciou, de modo único e definitivo, há quase dois mil anos atrás. Em outro contexto, Javier Campos e Joaquín Salazar, já avançados em idade, mas com o destemor dos verdadeiros discípulos de Jesus, foram capazes de colocar-se ao lado de alguém que estava sendo perseguido, pagando o preço desse gesto com o próprio sangue. O que movia esses homens era a capacidade de amar.
Em muitas pessoas poderá surgir a pergunta: até que ponto o derramamento do sangue e da água de Bruno, Dom Phillips, Javier e Joaquín é fonte de vida nova e expressão de um dom que reverbera em justiça para outras pessoas? De fato, o vale do Javari e a serra da Tarahumara são disputados por grupos de traficantes, policiais e “homens da lei” corruptos, invasores das terras indígenas, garimpeiros, madeireiros e pescadores que destroem florestas e rios. De que adiantou o “sacrifício” de suas vidas frente aos poderes que estão por detrás dessa violência institucionalizada? Somente quem tem a capacidade de olhar para além dos acontecimentos, como o discípulo amado diante do lado aberto do Crucificado, verá, no “sangue e na água”, motivos para crer que a verdade sobre o ser humano está dada nesses gestos supremos que implicaram a perda da vida: “quem perder a vida por causa de mim, a salvará” (Lc 14,24).
Geraldo De Mori SJ é professor e pesquisador no departamento de Teologia da FAJE