Geraldo De Mori SJ
“Deu-lhes poder e autoridade para expulsar os demônios e os enviou a pregar o reino de Deus e a curar os enfermos” (Lc 9,1-2)
No 9 de junho a Igreja Católica faz memória de São José Anchieta, figura histórica das origens do Brasil colonial,” a ele atribuído. Presença cristã em meio às populações originárias, muito contribuiu na implantação da cristandade colonial, com um método catequético e evangelizador que se tornou a marca da ação pastoral dos jesuítas em meio aos povos indígenas da época. Apesar de reconhecido, admirado e venerado, a Igreja tardou muito no processo que levou à sua beatificação (1980) e canonização (2014). Em parte, isso se deu por causa da exigência de milagre, própria ao processo estabelecido pela Congregação vaticana para a causa dos santos. Abordagens historiográficas mais recentes também contribuíram para desmistificar seu trabalho e o da Companhia de Jesus no período, mostrando o impacto dessa ação na destruição do mundo e da cultura indígena, embora atribuam aos jesuítas a defesa ferrenha dos direitos dos povos indígenas.
No dia 8 de junho de 2021, os jesuítas do Brasil que trabalham na região amazônica lançaram a Carta Aberta “Grito pela vida na Amazônia”, recordando o dia mundial do meio ambiente (5 de junho) e as várias agressões ao bioma amazônico, como o aumento de incêndios, o garimpo ilegal, os desmatamentos e a grilagem de terras. Nas últimas semanas, apesar da concentração das notícias ao redor da crise sanitária da Covid-19 e da CPI que busca mostrar as responsabilidades das autoridades políticas nacionais, regionais e locais no gerenciamento da pandemia, informações sobre ataques a terras indígenas na Amazônia, com violências terríveis são mais ou menos veiculadas pela grande mídia. Os que cuidam dessa imensa região compartilhada por tantos países da América Latina são de novo vítimas da cupidez do grande capital e dos interesses das elites retrógradas do continente.
A guerra de mundos, que está no começo do processo colonial do Brasil, continua sob novas formas. A voz dos jesuítas que ecoa nesses últimos dias, junto com a de tantas lideranças eclesiais e de pessoas comprometidas com a defesa dessa região vital para a saúde do planeta, lembra a voz de seus predecessores no século XVI, dentre as quais, sem dúvida alguma, a de Anchieta. Diante da surdez dos poderes do mundo da época, formas alternativas de organização em defesa dos povos autóctones foram criadas, como a das reduções guaranis, na região que hoje compreende parte do sul do Brasil, parte da Argentina e do Paraguai. Por décadas eles criaram uma sociedade alternativa, expressão real de uma vida em harmonia entre os habitantes das reduções e o meio ambiente. A Constituição de 1988 assegura aos povos originários do Brasil o direito à suas terras ancestrais, com seus recursos e sua forma cultural e religiosa de existir. Muitos dos avanços nela presentes representam séculos de lutas, apoiadas muitas vezes pela Igreja. Nosso país tem uma dívida histórica com os que primeiro habitaram suas terras. O que buscou Anchieta e seus companheiros no período colonial, e ainda inspira muitos agentes de pastoral que trabalham junto aos povos indígenas nas últimas décadas, é fazer da defesa da vida e das culturas indígenas a substância mesma da evangelização.
Para muitas pessoas, o evangelho é apenas uma mensagem espiritual, que diz respeito a uma salvação “eterna”, entendida como algo para uma “outra vida”, que vem depois da morte. Contudo, toda a vida pública de Jesus de Nazaré foi um serviço ao “reinado de Deus”. E esse serviço se traduzia em “cura aos enfermos”, “libertação dos possessos por espíritos malignos” e acolhida dos excluídos e “descartados” de seu tempo. Sua ação “terapêutica”, “libertadora” e acolhedora, tinha, portanto, efeito na vida real de quem estava enfermo, desequilibrado ou vivia à margem da sociedade. Não se tratava de uma salvação para “depois da morte”. Pelo contrário, tinha efeitos na existência concreta de quem era beneficiado pelo agir cheio de compaixão de Jesus. Seus discípulos, segundo os evangelhos, recebem o mesmo poder de Jesus, ou seja, são investidos do dom da cura, do poder de expulsar satanás e são chamados a criar um mundo de acolhida e fraternidade.
Infelizmente muitos que hoje se dizem cristãos estão mais preocupados com o sentido “espiritual” da salvação, ou seja, com o “bem-estar” que o encontro com Jesus provoca na própria vida, que se traduz em paz, experiência de reconciliação, perdão dos pecados, amor a Deus e ao próximo. Mas esse não é o evangelho de Jesus. Ele mesmo diz, ao inaugurar sua missão na sinagoga de Nazaré, que o Espírito de Deus estava sobre ele e que o tinha enviado para “anunciar a boa nova aos pobres, curar os enfermos, libertar os que estavam na prisão, anunciar um ano de graça do Senhor” (Lc 4,18-19). Esta é a compreensão de muitos seguidores e seguidoras de Jesus ao longo dos tempos, dentre os quais, em nosso país, se destaca José de Anchieta. Que a celebração de sua memória possa acender em todos os que se dizem cristãos o mesmo zelo e carinho para com os que eram e continuam sendo mais ameaçados em nosso tempo: os povos indígenas dessas terras cobiçadas pelos poderosos do passado e do presente. Que nossa voz possa se erguer, junto com a dos jesuítas que hoje trabalham na Amazônia, num grito pela vida na Amazônia!
Geraldo De Mori SJ é professor e pesquisador no departamento de Teologia da FAJE