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Se não acreditardes, não compreendereis (cf. Is 7, 9)

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Luiz Sureki, SJ

Apavorado com a força ameaçadora dos inimigos, o rei de Judá, Acaz, busca a segurança que lhe pode vir de uma aliança com a grande potência daquela época, o império da Assíria. Mas o profeta convida-o a confiar apenas no Deus único de Israel. As palavras do profeta Isaías ao rei Acaz relaciona a fé (crer) com a compreensão (conhecimento) da verdade: “se não acreditardes, não compreendereis”. Sabemos, pela continuação do relato bíblico, que Acaz não acreditou nas palavras do profeta, foi buscar apoio junto ao rei da Assíria e, assim, foi abrindo as portas para a conquista dos assírios (com Senaqueribe) sobre Judá, conquista esta que se daria efetivamente no reinado de seu sucessor, seu filho, o rei Ezequias.

Acerca dessa mesma passagem da Escritura, a Carta Encíclica Lumen Fidei nos diz que em hebraico se lê: “se não acreditardes, não subsistireis”. Na tradição bíblico-profética de Israel é claro que só se pode crer naquele que É, que subsiste: YHWH (Ex 3,14). Séculos depois, Santo Tomás de Aquino (1225-1274) designaria “Aquele que É” como “Ipsum Esse per se subsistens”. Aquele que é crido como subsistente é, ao mesmo tempo, o fundamento da subsistência daquele que crê. Santo Agostinho (354-430), nas suas Confissões, expressou essa síntese entre o ‘compreender’ e o ‘subsistir’ do seguinte modo: “Estarei firme e consolidar-me-ei em Ti, … na tua verdade”. Com efeito, a fé tem uma relação direta com a verdade. Verdadeiro se diz daquilo que permanece, que tem consistência, que tem fundamento. A mentira, ao contrário, é identificada pela inconsistência, pela sua não-permanência no tempo.

A passagem de Isaías diz ainda que o ser humano precisa de conhecimento, precisa de verdade, porque sem verdade não se mantém em pé, não tem segurança, firmeza, solidez. Além disso, também diz que a fé precede a compreensão da verdade nos assuntos divinos, ela vem antes do conhecimento do que é ou do que se torna verdadeiro. Efetivamente, como poderíamos afirmar com convicção que algo é verdadeiro, se antes não acreditássemos na nossa própria afirmação? Como poderia um cristão dizer a alguém que conhece Jesus Cristo como caminho, verdade e vida (Jo 14,6), se antes não acreditasse no próprio Jesus Cristo como tal? E como poderia comprovar tal verdade de Jesus Cristo em sua vida, se antes não acreditasse nela e, respectivamente, nele?

A atitude subjetivo-afetiva do confiar vem naturalmente antes do conhecer objetivamente. Desde muito cedo, na tenra infância, sem justificativas e explicações racionais, aprendemos a confiar em nossos pais e nas pessoas mais próximas. O nosso dia a dia da vida seria impossível se nossa confiança nas pessoas fosse menor que a nossa desconfiança. Se só confiássemos em quem objetivamente conhecemos, não confiaríamos em ninguém, pois as pessoas nunca são total e objetivamente conhecidas; elas se resguardam no seu mistério, elas reclamam o seu ser-outro, elas se afirmam na sua liberdade e, assim, escapam à determinação objetivante do conceito. Na atitude de crer em alguém, o grau de certeza que o crente tem é subjetivamente suficiente, mas não é objetivamente suficiente. Isso distingue, por um lado, a fé da mera opinião, em que não há um grau de certeza suficiente nem subjetiva nem objetivamente, e, por outro lado, a distingue do conhecimento objetivo-demonstrativo ou científico, em que o grau de certeza é suficiente tanto subjetiva quanto objetivamente.

Ao final do capítulo 20 de seu evangelho, escreve São João que os sinais por ele escolhidos e relatados acerca de Jesus “foram escritos para que [os leitores/as] creiam que Jesus é o Cristo, o Filho de Deus, e para que, crendo, tenham vida em seu nome” (Jo 20,31). Fica claro que a intenção do escrito não era comunicar aos destinatários um conjunto informativo de verdades objetivas a serem aceitas como tais, isso seria crer no evangelista João!, mas antes o de apresentar Jesus como alguém para ser crido, e que crer em Jesus (como o próprio João cria) significava ter verdadeira vida. E, assim, o “vim para tenham vida e a tenham em abundância” de Jesus (Jo 10,10) só se torna verdade para alguém que acredita nele como o portador de vida. Algo semelhante ocorre com muitos dos milagres realizados por Jesus: tua fé te salvou!

Um dos mais ilustres pensadores do século XII, Pedro Abelardo (1079-1142), para encontrar uma abertura racional à fé, inverteu a frase de Isaías ao dizer: “se não compreenderdes, não acreditareis”. Ele usou essa versão da frase para enfatizar a importância da compreensão racional e do questionamento crítico na formação de crenças e opiniões. Segundo Abelardo, não deveríamos simplesmente aceitar ou crer na autoridade ou a tradição sem primeiro buscar entender os argumentos e evidências que sustentam essas crenças. Ao seu modo, o medieval Abelardo já estava antecipando o que mais tarde haveria de ser a principal característica dos tempos modernos. Embora sua intenção tenha sido a melhor possível, iniciava-se um processo em que a fé ia cessando de ser uma experiência e ia começando a se tornar um sistema de crenças. O Símbolo da Fé cristã ia se convertendo em doutrina cristã. E da doutrina para a ideologia é apenas um passo.

Um pouco mais jovem que Pedro Abelardo, Anselmo de Cantuária (1033-1109) é comumente lembrado por sua célebre expressão “fides quaerens intellectum”, traduzida como: a fé que busca inteligibilidade, ou ainda: que busca entendimento, que busca compreensão. A ideia subjacente à expressão é de que fé e razão não são opostas ou excludentes, mas sim complementares. A fé pode fornecer uma base para a compreensão da realidade e da existência, mas é através da razão que se pode aprofundar e entender essa realidade de forma mais acurada e consciente. Para Anselmo, a razão é uma aliada da fé, que ajuda a esclarecer suas verdades. Com efeito, não faz sentido dizer que não podemos conhecer o que Deus (nos) deu a conhecer! Não devemos tomar a fé por algo irracional, afinal a busca por expressar-se de modo compreensível, inteligível e coerente lhe é constitutiva. Quem crê apenas porque é preciso crer, é mais ateu do que aquele que duvida porque gostaria de entender melhor.

Estamos no Tempo Pascal, às voltas com as narrativas da comunidade cristã primitiva acerca da sua experiência da ressurreição de Jesus dentre os mortos. Mas é claro que o crer na vida nova de Jesus Cristo ressuscitado não dispensa ninguém de buscar compreender os mecanismos que o levaram a ser morto. Se por um lado é Jesus mesmo quem diz, de modo ativo, que ninguém lhe tira a vida, senão que é ele quem a dá (Jo 10,18), por outro lado se professa dele no Credo, na voz passiva, “foi crucificado, morto e sepultado”. O dom da sua vida, o dar (a nós) a vida divina, o Espírito, que é o centro da fé pascal, pode ficar obnubilado pelo trágico que envolve a execução do homem-divino Jesus condenado a morrer na cruz; e a sadia indignação pela morte do inocente pode dar lugar ao doentio sentimento de vingança que, ilusoriamente, insiste em procurar os culpados e a querer reparar uma injustiça do passado sem perceber que se pode estar cometendo no presente uma outra injustiça semelhante àquela.

A fé nos permite compreender que não há ressurreição sem morte. Quando a morte é destituída de realidade, também a ressurreição se torna irreal, abstrata e vazia. Crer no Ressuscitado não é ignorar o Crucificado; assim como crer no Espírito Santo – Senhor que dá a vida – e, por isso, crer na ressurreição dos mortos, não é ignorar os mortos e os que são mortos, todos os dias, por injustiças semelhantes àquelas cometidas no processo que conduziu Jesus de Nazaré à morte. Tais injustiças incluem calúnia, difamação, falso testemunho, inveja dissimulada sob pretextos divinos e políticos. Compreender isso faz parte da em Jesus Cristo, do amor à verdade e da esperança de ressurreição; tudo isso como um “sim” divino à vida vivida dignamente. A vida é o bem mais elevado que de Deus recebemos, o bem mais elevado que amamos e, por isso, o bem mais elevado que esperamos que seja eterno como eterna é vida do próprio Deus!

Feliz Tempo Pascal!

 

Luiz Sureki, SJ é professor, pesquisador e diretor do departamento de Filosofia da FAJE

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