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Sobre a esperança

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Marília Murta de Almeida

Clarice Lispector, na pequena crônica “Uma esperança”, diz que a esperança “é o que nos sustenta sempre”, apesar de ser frágil e quase sem corpo, como o inseto de mesmo nome. A esperança, então, frágil e quase sem corpo, é o que mantém de pé o ser humano. Em outra vertente, o bispo e poeta Pedro Casaldáliga disse em uma celebração a seguinte mensagem que pedia ao povo que o ouvia que repetisse, mais de uma vez: “podem nos tirar tudo, menos a fiel esperança”.

Se juntarmos as duas ideias, podemos dizer que a esperança frágil e quase sem corpo é fiel a nós, nos sustenta e não nos deixa. Não nos podem tirar a esperança porque ela está em nós como que entrelaçada ao que constitui o ser que somos. Vivemos no tempo e no tempo tecemos nossa história. A esperança aponta para o futuro e orienta nossa ação na direção apontada.

A esperança, portanto, não é algo que nos vem de fora. Não é a tábua em que nos apoiamos quando parece que estamos prestes a sucumbir. Ela está em nós, faz parte do que somos. A esperança fala quando tudo parece ter sido retirado, fala a nos lembrar que ainda está lá e que, enquanto estiver, estamos vivos. A sua fragilidade vem do fato de que não tem poder de ação no mundo. Nesse sentido podemos entender o final da crônica de Clarice:

Mas como é bonito o inseto: mais pousa que vive, é um esqueletinho verde, e tem uma forma tão delicada que isso explica por que eu, que gosto de pegar nas coisas, nunca tentei pegá-la.  Uma vez, aliás, agora é que me lembro, uma esperança bem menor que esta, pousara no meu braço. Não senti nada, de tão leve que era, foi só visualmente que tomei consciência de sua presença. Encabulei com a delicadeza. Eu não mexia o braço e pensei: “e essa agora? que devo fazer?” Em verdade nada fiz. Fiquei extremamente quieta como se uma flor tivesse nascido em mim. Depois não me lembro mais o que aconteceu. E, acho que não aconteceu nada.

Ainda que a beleza do texto nos anuncie de alguma maneira um acontecimento, talvez mesmo o acontecimento da poesia que nos abre para a beleza presente no mundo, a presença da esperança em nós não faz com que algo aconteça. Por isso alguns céticos podem desdizer do seu poder. Mas se ela é o que nos sustenta, há de ter algum poder. E aqui podemos nos perguntar sobre o que seria essa tal sustentação a que a escritora se refere.

A ideia indica que o ser humano precisa de um sustento para além do material. Se “não só de pão vive o homem”, do que mais precisamos? Se o pão mantém de pé o meu corpo, o que, em mim, a esperança mantém de pé? Recorro aqui ao exegeta bíblico Paul Beauchamp que afirma que os humanos, à diferença dos animais, que lutam para manterem-se vivos, precisam lutar para manter vivo em si o desejo de viver. Parece ser isso o que a esperança mantém vivo em nós. Nos sustenta por manter em nós a chama do desejo pela vida.

E, nesse sentido, bem sabemos que ela pode esvair-se de nós. Mas quando isso acontece, estamos adoecidos. O nosso mundo contemporâneo nos mostra esse adoecimento na abundância de casos de depressão que muitas vezes culminam no autoextermínio. O desejo pela vida, se desaparece, faz com que a pessoa se entregue à inação. E podemos aqui vislumbrar o que seria então o poder da esperança.

Seu poder é o de nos manter em ação, movidos por ela. A esperança sustenta em nós o desejo pela vida e esse desejo nos mantém ativos na vida e no mundo. Só agimos quando vislumbramos vida futura, a seta que nos orienta, tal como um mapa em caminho desconhecido. A esperança é a seta que nos orienta no mapa de nossa temporalidade. Sem horizonte temporal não há vida humana possível. A experiência humana encerrada no presente vivido, sem memória e sem orientação para o futuro, se perde na ausência de sentido. A esperança sustenta nosso desejo de viver porque mantém viva a seta de nosso mapa temporal.

Voltemos então a Pedro Casaldáliga. Que esperança seria aquela que não nos podem tirar? Ou, em outra visada, a quem não podem tirar a fiel esperança? Se a esperança, apesar de ser constitutiva do que somos, pode desaparecer de nosso horizonte a ponto de deixarmos de querer viver, o que levaria o poeta a afirmar, repetidamente, sua permanência fiel?

Talvez ele se refira à esperança cristã, instalada em nós pela fé que nos aponta um horizonte temporal futuro de dupla dimensão. Nos põe em ação pela construção de um mundo justo e fraterno e nos acena com o encontro com Deus depois de nossa morte. Podemos arriscar dizer que qualquer tradição religiosa proporciona àqueles que fazem parte dela essa esperança fiel, mantida pelo olhar de um Deus.

E a esperança fiel seria como que o antídoto a nos proteger do adoecimento da falta de desejo pela vida.

Marília Murta de Almeida é professora e pesquisadora no departamento de Filosofia da FAJE

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