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Sobre o grito e o silêncio

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Marília Murta de Almeida

Entre um silêncio marcado de tristeza e o aperto no peito que parece segurar um grito que não sai – ainda – temos aguardado que algo irrompa no cenário nacional, como o emergir do monstro da lagoa de que nos fala a letra da canção Cálice, de Chico Buarque e Gilberto Gil. Canção escrita e calada num tempo em que a censura imposta pelo governo ditatorial decretava o que podia e o que não podia ser dito. Ela própria, ao mesmo tempo, proibida de ser cantada – e vemos o artista com o microfone emudecido diante de si – e soltando o grito que enfrenta o silêncio imposto, com seu conteúdo que nos alcança até hoje. Leiamos aqui um trecho, como se escutássemos:

Como é difícil acordar calado
Se na calada da noite eu me dano
Quero lançar um grito desumano
Que é uma maneira de ser escutado
Esse silêncio todo me atordoa
Atordoado eu permaneço atento
Na arquibancada pra a qualquer momento
Ver emergir o monstro da lagoa

O silêncio que nos atinge hoje parece dizer da impossibilidade da comunicação. O grito, como no tempo da canção, parece só sair de modo desumano, ou seja, incompreensível para o outro. Uma voz lançada de um lado da cidade não é escutada pelo outro lado. O silêncio que nos atordoa é o silêncio de um barulho ensurdecedor que não nos deixa ouvir nada. O grito preso é o grito que teme não ser escutado em meio ao caos. Mas uma crescente onda de indignação vai formando a massa informe de raiva e desejo que pode arrebentar a contenção ao grito e fazer emergir o movimento capaz de alterar a realidade que parece inatingível.

Rodrigo S. M., narrador criado por Clarice Lispector para contar a história de Macabéa, anti-heroína de A hora da estrela, espera que ela grite, que exerça o seu direito ao grito. Ele grita por ela ao contar a sua história de miséria e injustiça, e A hora da estrela é um grito como a letra de Cálice. Mas Macabéa não grita, assim como não grita o eu lírico da canção, que segue com a “palavra presa na garganta”.

O artista parece esperar de nós que gritemos com ele. Que o silêncio não nos aprisione como a nos impedir de sermos o que somos, o ser que fala. Macabéa, vivendo um uma cidade “toda feita contra ela”, não grita, mal fala, e termina atropelada por um carro de luxo. Macabéa, como nós, não sabia que precisava gritar. Vivia suas pequenas alegrias e assim se contentava feliz. O carro de luxo que levou para ela a morte, nos atrai e fascina.
Parece que, de alguma maneira não inteligível para uns tantos, o atual governo brasileiro foi objeto de fascínio para outros tantos. E agora somos todos atropelados por sua força e brutalidade. Por sua face de morte. O silêncio ainda atordoa, e talvez ainda precisemos do grito do artista para nos movermos. No início de Um sopro de vida, Clarice Lispector escreve:

Isto não é um lamento, é um grito de ave de rapina. Irisada e intranquila.
O beijo no rosto morto.
Eu escrevo como se fosse para salvar a vida de alguém. Provavelmente a minha própria vida. Viver é uma
espécie de loucura que a morte faz.
Vivam os mortos porque neles vivemos.

Esse trecho pode ser escutado como impulso para o grito que não temos sabido lançar. Que o silêncio dos mortos nos alavanque para a vida. Que o atordoamento que nos acomete quando paramos diante do número de mortos e de descasos para com a vida, que possamos lançar nosso “grito de ave de rapina” para salvar as nossas vidas. De cada um e de todos. E, se viver é a loucura da morte, que vivamos a loucura que nos salva.

É como se a artista nos chamasse para um despertar diante do sono impossível da morte. Ao beijar o rosto morto, ao contrário do que contam as histórias encantadas, não é o morto que desperta, é quem beija. Ela escreve como quem beija o rosto morto para salvar a vida de alguém, provavelmente a dela própria. Beijemos os rostos de nossos mortos, despertemos, deixemos sair o grito que machuca por dentro, com a pressa de quem deve salvar a vida. A própria, a de cada um, a de todos nós. As vidas todas em risco diante de um governo que nos conduz ao encontro da morte, ou que é, ele próprio, o portador da morte que nos atinge.

Ainda que o eu lírico da canção se pergunte sobre o sentido da ação – “de que adianta ter boa vontade”? – e pareça desejar a morte, sabemos agora, há décadas de distância, que sua força fez parte da ação que afastou de nós aquele cale-se. Que agora possamos deixar sair o grito contido pelo assombro que tem nos mantido atordoados, e fazer vida em nome dos que morreram.

É preciso fazer cair o governo que nos ameaça.

Marília Murta de Almeida é professora e pesquisadora no departamento de Filosofia da FAJE

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