Alfredo Sampaio Costa SJ
Sempre que iniciamos algo, espontaneamente nosso olhar vai em busca do desfecho. Pois “nada dura para sempre”, diz o ditado popular. Não é diverso ao tratarmos da oração. Com muito ânimo, propusemo-nos a viver aquele momento na presença do Senhor. Enfrentamos, confiantes na graça que não falta nunca, os percalços de nos abandonarmos ao querer divino. Penetramos, corajosamente, profundezas inexploradas de nosso ser. Os minutos se passaram, em um silêncio cheio de uma presença. O tempo está chegando ao seu final. É preciso concluir nosso momento de oração. A vida nos chama de volta! Eis que é hora do “colóquio”, última oportunidade para falar (e escutar) o que ainda não tivemos oportunidade de dizer, ou que reservamos com emoção para o “grand finale” de nossa oração. São as palavras decisivas, que queremos que fiquem impressas no coração para retornarmos às nossas atividades.
O colóquio deve ser vivido na tranquilidade, é avesso a toda pressa e correria. Poderá inclusive ocupar parte não desprezível do tempo previsto para a oração.
Será nesse período conclusivo da nossa oração, de diálogo improvisado e espontâneo com o Senhor, onde tudo começará a se encaixar na nossa vida: momentos antes experimentados como desconectados do todo da nossa existência, sentimentos até então vividos de forma contraditória ou reprimidos. Rompidos os mecanismos de controle e supervisão, abandonados a uma conversa que vai sendo produzida à medida que acontece, o mundo todo – e dentro dele, nossa vida – vai sendo incluído. Desfilam diante de nossos olhos extasiados rostos de pessoas conhecidas, mas também de desconhecidas, situações vividas ou que desejaríamos viver, e esse caleidoscópio aparentemente desordenado vai ganhando formas e contornos amigáveis, produzindo sentimentos, apelos, questionamentos que nos atingem cada vez mais intensamente.
Ao nos despedirmos desse encontro, por vezes a última palavra virá do Senhor, às vezes será uma expressão de gratidão incontida da nossa parte. O que importa é que seja envolta por um desejo de “até breve!”.
O colóquio, ambiente propício para a configuração do nosso desejo primordial
Durante o tempo transcorrido em oração, quantas coisas se passam pela nossa mente e coração: talvez muitas nem sequer nos demos conta quando, furtivamente, ocupavam nossa consciência espiritual. Dentre essas forças potentes, estarão, sem dúvida, nossos desejos. Explica González Buelta:
“O desejo tem uma importância decisiva para estruturar nossa afetividade e para tomar as decisões concretas que vão marcando cada dia nossa vida que pretende nascer do amor. O desejo pode ir adiante de nós como um único ponto no horizonte que focaliza nossos interesses, e dentro de nós estruturando sabiamente nossa pessoa para poder alcançar esse objetivo”(1) .
Neste momento de “soltar as rédeas” de nossos controles para saborearmos prazerosamente da Presença amorosa do nosso Deus, nossos desejos mais fundamentais se revelarão na sua potente capacidade de nos mover, fazendo convergir nossos impulsos, preocupações, projetos na direção do que, verdadeiramente, pode nos fazer viver uma vida plena de sentido!
Aqui tocamos algo central na nossa vida de oração: o tema do “desejo de Deus”. Quem procura, acha, diz o Evangelho. A quem bate, lhe será aberto. A atitude de busca é fundamental na vida cristã.
Podemos considerar nossa vida de oração como uma grande “escola de educação dos nossos desejos”. Como Inácio mandou registrar na sua Autobiografia, com relação ao tempo em Manresa, onde receberia inúmeras graças espirituais:
“Neste tempo, Deus tratava-o como um mestre-escola trata uma criança, ensinando-o. E quer isto fosse pela sua rudeza e fraca inteligência, ou porque não tinha quem lhe ensinasse, ou pela firme vontade que Deus lhe tinha dado de O servir, via claramente e sempre pensou que Deus o tratava desta maneira. Pelo contrário, se duvidasse disto, pensaria ofender sua Divina Majestade” (Aut. 27).
Creio que jamais terminaremos de aprender, pois o Senhor sempre quer se comunicar a nós de maneiras novas.
Aqueles que trilharam, em alguma de suas modalidades, a experiência espiritual dos Exercícios, já experimentaram como tudo acontece movido pela ótica do desejo: “No começo dos Exercícios Espirituais, acende-se o desejo, com o Princípio e Fundamento, para que vivamos a nossa existência “somente desejando e escolhendo o que mais nos conduz para o fim para o que somos criados” (EE 23)” (2) .
“Desejando” é o verbo escolhido por Inácio, para falar do “Magis”, do desejo infinito que se acende e não se apaga mais! Esse desejo central e único, vivido com a maior generosidade será o único eixo ao redor do qual irá se orquestrando com harmonia qualquer outro desejo.
A contemplação dos mistérios da vida de Cristo irá nos ajudando a filtrar nossas motivações e a descobrirmos a alegria de sermos livres no seguimento de Jesus, o Homem Livre por excelência:
“Para conseguir esse fim, teremos que centrar o desejo na pessoa de Jesus, oferecendo-nos incondicionalmente para tudo o que ele vá suscitando dentro de nós, ao contemplar cada mistério da sua vida, em uma intensa relação pessoal com ele e com os olhos bem abertos sobre a realidade do mundo em que vivemos. O desejo vai então se purificando de falsas motivações e vai-se afinando cada vez mais, ao nos encontrar com o Jesus pobre e humilde do evangelho, inteiramente original e livre” (3) .
O desejo não pode se consumir em seu próprio ardor como uma labareda passageira e inútil. À medida em que vamos amadurecendo na liberdade, cresce em nós o desejo de um compromisso, que Inácio chama de “eleição de um estado de vida” na Igreja. O que começou como um desejo interior ganhará contornos e expressões estáveis, institucionais e visíveis.
Uma vez tomada a decisão movido pela graça de Deus, o papel do desejo não termina. Antes, tornar-se-á sempre mais necessário, uma vez que o seguimento de Jesus humilhado e despojado de tudo até a cruz, com quem queremos nos identificar (EE 165: três maneiras de humildade) pode nos colocar em situações muito duras, onde seremos arrastados até o limite de nossa capacidade de resistência; por isso é necessário fortalecer o desejo, acompanhando livremente a Jesus na sua paixão dolorosa na qual desce até o fundo do sofrimento humano, e sintonizando com sua dor pessoal e a de seu povo, que carrega a cruz espoliado hoje no meio de nós (EE 193). Rezando e contemplando a Paixão de Nosso Senhor, será esse desejo de identificação que nos permitirá ir até o fim e não desanimarmos diante das dificuldades e sofrimentos decorrentes da nossa opção por Cristo.
Na vitória de Cristo sobre a morte, o desejo finalmente se transfigura com o gozo da ressurreição que o Senhor partilha gratuitamente com seus amigos, consolando-os (Cf. EE 221). Santo Inácio dava enorme importância ao desejo. Ao escrever as Constituições da Companhia de Jesus, em um parágrafo iluminador, Inácio insistia que é realmente decisivo, para ir estruturando a pessoa em conhecer internamente a Jesus e segui-lo, “desejar com todas as forças possíveis quanto Cristo N.S. amou e abraçou (Constituições n.101).
Toda nossa vida de oração se resume nisso. Uma configuração do desejo ao desejo de Jesus: “No centro da vida cristã, segundo a vocação de cada pessoa, iremos configurando um desejo evangelicamente lúcido e apaixonado, que é tanto mais autenticamente nosso, quanto mais é entregue ao desejo de Jesus” (4) .
A consolação gratuitamente dada
Na oração vamos contemplando a Jesus e tentamos nos sintonizar com seu universo afetivo. “Tenham entre vocês os mesmos sentimentos de Cristo Jesus” (Fl 2,5). Esta transformação não se realiza imediatamente. É um presente lento de Deus. Dentro de nós a ambiguidade se esconde nas zonas escuras do coração e às vezes resiste aos mais exigentes discernimentos. Por isso mesmo, os mestres espirituais insistem tanto na formação do coração. O processo de purificação do coração nem sempre é agradável. Como nos desprender das ambiguidades sem dor quando estão aderidas a dimensões muito sensíveis de nossa pessoa e de nossas relações? Como caminhar para um futuro desconhecido sem sentir o medo de nos desgarrarmos daquilo que é seguro?
O que vai acontecendo em nosso coração? Esta pergunta é fundamental para poder discernir os sentimentos que se movem dentro de nós, dar-lhes nome, saber de onde vêm e aonde nos levam. Ordenar o coração, alcançar a liberdade afetiva é a condição para poder ordenar toda a pessoa “somente” em torno das sempre novas propostas de Deus” (5) .
A finalidade desse conversar com o Senhor na oração é ir nos conduzindo a uma cada vez maior sintonia com o coração de Jesus, ao mesmo tempo que vamos conhecendo interiormente o nosso próprio coração. Queremos ir alcançando uma maior liberdade afetiva que nos possibilitará focar somente em Deus a nossa vida.
Uma oração decidida
Uma oração que ficasse somente em uma troca de sentimentos entre nós e o Senhor, sem nenhuma incidência na nossa vida concreta, não seria uma oração cristã. Todo encontro autêntico com o Senhor pede de nós uma tomada de decisão: acolher, rejeitar, cumprir, realizar, mudar, transformar… Cada um destes verbos denota com sua força expressiva um dinamismo transformador, uma atitude diante da realidade do mundo em que nos encontramos. Se queremos verificar até que ponto nossa oração está sendo vivida de forma autêntica, basta tomar cada um destes verbos e aplicá-los à nossa experiência vivida. Colocando em forma de perguntas, seria algo como:
– O que é preciso acolher da minha oração como expressão da Vontade de Deus?
– O que devo rejeitar terminantemente e, portanto, excluir da minha vida espiritual, pois percebo que é impedimento para viver minha fé?
– O que me sinto impelido a realizar concretamente, a partir do que experimentei na minha oração?
– Que atitudes necessito reformular, reelaborar, reconstruir?
Respondendo, ainda que provisoriamente, tais questões, nossa oração revela toda sua força transformadora!
1 – Benjamín GONZÁLEZ BUELTA, Orar em um mundo fragmentado, 92.
2 – Benjamín GONZÁLEZ BUELTA, Orar em um mundo fragmentado, 94.
3 – Benjamín GONZÁLEZ BUELTA, Orar em um mundo fragmentado, 94.
4 – Benjamín GONZÁLEZ BUELTA, Orar em um mundo fragmentado, 94-95.
5 – Benjamín GONZÁLEZ BUELTA, Orar em um mundo fragmentado, 97-98.