Padre Alfredo Sampaio Costa, SJ
Levando-se em conta a sensibilidade que marca a questão da ecologia integral, e todos os desafios que tocam a dinâmica da crise ambiental, nada mais pertinente do que retomar a riqueza da mística de Teilhard de Chardin, em toda a sua densidade e tessitura. Ela merece ser redescoberta. Toda a sua obra e vida traduzem um hino ao mundo, uma poética da criação e das criaturas vibrantes de emoção. Iniciamos nosso breve artigo trazendo as palavras com as quais Teilhard de Chardin introduzia aquela que é considerada sua obra autobiográfica, “Le Coeur de la Matière” (O Coração da Matéria):
“O que eu me proponho, ao longo destas páginas (na esperança de que meu caso fizesse reconhecer, ou mesmo nascer, muitos outros casos semelhantes), é simplesmente mostrar como, de um ponto de ignição inicial – congênito – o Mundo, ao longo de toda a minha vida, por toda a minha vida, pouco a pouco se iluminou, se inflamou aos meus olhos, até tornar-se, ao redor de mim, inteiramente luminoso por dentro […]. Assim eu experimentei no contato com a Terra, a Diafania do Divino no coração de um Universo ardente. – O Divino irradiante das profundezas de uma Matéria em fogo: eis o que eu tentarei fazer entrever e fazer partilhar neste escrito” (pp. 21-22).
Não há dúvida de que Teilhard foi um dos grandes místicos do século XX. Um místico singular, profundamente sintonizado com a “ressonância do Todo”, com a perscrutação do Real, com a vibração do Tempo. Para ele, toda a dinâmica vital da matéria era caminho para a percepção da Grande Presença. Em seu belo texto em que aborda a missa sobre o mundo, convoca a atenção de todos para a irradiação universal dessa Presença, que é mistério que sempre advém. Na distância das estepes da Ásia, na ausência do pão e do vinho para celebrar a eucaristia, oferece ao Pai “o trabalho e a fadiga do Mundo”. O seu cálice e sua patena “são as profundezas de uma alma largamente aberta a todas as forças que, num instante, vão se elevar de todos os pontos do Globo e convergir para o Espírito”[1]. Ali em Ordos revela com um lirismo que é único sua “simpatia irresistível por tudo aquilo que se move na matéria obscura”. É com a “seiva do mundo”, e a fragrância que o envolve, que capta a Presença do Espírito, e sobe “vestido com esplendor concreto do Universo”[2]. O seu olhar é o de alguém que busca um “Deus palpável”, que é também gratuita Fantasia; um Deus que é força ardente, e se revela a cada momento na simplicidade das coisas.
O texto místico mais importante de Teilhard é “A Missa sobre o Mundo” que Teilhard fez quando estava no deserto de Ordos (China), numa expedição científica e não tinha condições de celebrar a missa na festa da Transfiguração que ele particularmente amava. Para ele, a presença de Cristo na Eucaristia transbordava da hóstia sobre o mundo:
“Para além da hóstia transubstanciada, a operação sacerdotal se estende ao cosmos inteiro”. “A transubstanciação se expande em uma divinização real, embora atenuada, de todo o universo. Do elemento cósmico onde está inserido, o Verbo age para subjugar e assimilar a si todo o universo”. “A eucaristia opera, além da transubstanciação do pão, o crescimento do Corpo místico e a Consagração de todo o cosmo”.
O texto é de grande vibração mística e de muita beleza literária e merece por isso ser reproduzido e meditado pausadamente:
“Senhor, já que uma vez ainda, não mais nas florestas da França, mas nas estepes da Ásia, não tenho pão, nem vinho, nem altar, eu me elevarei acima dos símbolos até a pura majestade do Real, e vos oferecerei, eu, vosso sacerdote, sobre o altar da terra inteira, o trabalho e o sofrimento do mundo”.
“O sol acaba de iluminar, ao longe, a franja extrema do primeiro oriente. Mais uma vez, sob a toalha móvel de seus fogos, a superfície viva da Terra desperta, freme, e recomeça seu espantoso trabalho. Colocarei sobre minha patena, meu Deus, a messe esperada desse novo esforço. Derramarei no meu cálice a seiva de todos os frutos que hoje serão esmagados”.
“Meu cálice e minha patena, são as profundezas de uma alma largamente aberta a todas as forças que, em um instante, vão elevar-se de todos os pontos do Globo e convergir para o Espírito”.
“Outrora, carregava-se para vosso Templo as primícias das colheitas e a flor dos rebanhos. A oferenda que esperais agora, aquela de que tendes misteriosamente necessidade cada dia, para aplacar vossa fome, para acalmar vossa sede, não é nada menos do que o crescimento do mundo impelido pelo devir universal”. “Recebei. Senhor, essa hóstia total que a criação, movida por vossa atração, vos apresenta na nova aurora”.
“Cristo glorioso, influência secretamente difusa no seio da Matéria e Centro deslumbrante em que se ligam todas as fibras inúmeras do Múltiplo, Potência implacável como o Mundo e quente como a Vida; Vós que tendes a fronte de neve, os olhos de fogo, os pés mais irradiantes que ouro em fusão; Vós cujas mãos aprisionam estrelas, Vós que sois o primeiro e o último, o vivo, o morto e o ressuscitado: Vós que reunis em vossa unidade todos os encantos, todos os gostos, todas as forças, todos os estados: é por Vós que meu ser chamava com um desejo mais vasto do que o universo: Vós sois verdadeiramente meu Senhor e meu Deus!” “Encerrai-me em Vós, Senhor!”.
“Toda a minha alegria e meu êxito, toda a minha razão de ser em e meu gosto de viver, meu Deus, estão suspensos a essa visão fundamental de vossa conjunção com o Universo. Que outros anunciem os esplendores de vosso puro Espírito! Para mim, dominado por uma vocação que penetra até as últimas fibras de minha natureza, eu não quero, eu não posso dizer outra coisa que os inúmeros prolongamentos de vosso Ser encarnado através da matéria: jamais poderia pregar senão o mistério de vossa Carne, ó Alma que transpareceis em tudo o que nos rodeia!”.
“Ao vosso Corpo em toda sua extensão, isto é, ao Mundo tornado por vosso poder e por minha fé o crisol magnífico e vivo em que tudo aparece para renascer, eu me entrego para dele viver e dele morrer, ó Jesus”.
Henri de Lubac soube reconhecer com grandeza a riqueza do vigor místico de Teilhard[3] e a peculiaridade da linguagem que envolve a sua reflexão, que enquanto mística é paradoxal e “excessiva”, mas guarda o segredo de quem toca o Mistério do Real. Alguns resistem à sua ousadia, pois sentem-se balançados na sua autocompreensão, e temem perder o chão sob os pés. Mas para quem sabe ver, o caminho que ele abre é singular e novidadeiro.
Teilhard é alguém que sente apaixonadamente com seu tempo. O desafio essencial que lança com sua vida e seus trabalhos é o de saber captar a presença de Deus em toda parte, de “vê-lo no mais secreto, no mais consistente, no mais definitivo do mundo”. Como bem sintetizou De Lubac, “ao cristão que sabe ver, não há nada no mundo que não mostre Deus”[4]. O que se exige de todos é uma educação do olhar, de forma a vislumbrar a diafania de Deus, sua “universal transparência” na criação e na história. O ser humano, como mostra Teilhard em diversos momentos de sua reflexão, já está sempre inserido no Meio Divino. O que é necessário, é dar-se conta disso, abrir os olhos para perceber essa sua imersão permanente no Mistério do Todo.
Em carta de abril de 1923, Teilhard sublinha que os vértices habitados por Deus não se encontram numa montanha inacessível, mas numa “esfera mais profunda das coisas”. E conclui dizendo que “o segredo do mundo está em toda parte onde conseguimos captar a transparência do Universo”[5]. Essa percepção da “imediaticidade” do Mistério em toda parte, traduz uma visão profunda do Deus criador. Longe de ser uma visão problemática, revela uma percepção que conquistou cidadania no pensamento teológico atual, como bem mostrou Henrique Cláudio de Lima Vaz. Trata-se de uma “visão profundamente tradicional, integralmente ortodoxa: nela se verificam maravilhosamente as características da mística cristã enumerada por um grande teólogo contemporâneo, uma das luzes, convém lembrá-lo, do Vaticano II”[6].
O amor ao tempo e à terra são vinculantes na reflexão mística de Teilhard. Se no passado havia uma dicotomia que separava o amor ao céu e o amor à terra, como se fossem possibilidades excludentes, abre-se agora um caminho novo: “ir ao céu através da terra”. Trata-se de uma nova comunhão com Deus através do Mundo. Em carta a Léontine Zanta, de outubro de 1926, assinala Teilhard:
“Parece que a humanidade não voltará a apaixonar-se por Deus antes que Este lhe seja mostrado no termo de um movimento que prolongue o nosso culto pelo Real concreto, em vez de a ele nos arrancar. Ah!, como o Real seria formidavelmente poderoso para nos arrebatar ao nosso egoísmo, se soubéssemos olhá-lo na sua prodigiosa grandeza!”[7].
Na visão teilhardiana, Deus é sempre um Mistério que advém, uma surpresa permanente. Deus está sempre em processo de mudança. Não apenas um Deus do alto, mas um Deus à frente. A descoberta desse Deus Mistério convoca a uma fé transformadora, que combina uma dinâmica ascensional, em direção ao Mistério sempre transcendente, com uma dinâmica propulsiva de imersão no imanente[8].
Que também nós nos deixemos maravilhar por essa surpreendente irrupção de Deus no coração da matéria que compõe nosso mundo e possamos nos engajar decididamente na defesa do nosso meio ambiente!
Pe. Alfredo Sampaio Costa, SJ é professor e pesquisador no departamento de Teologia da FAJE
27/11/2025
[1] Teilhard de Chardin. Hino do universo. São Paulo: Paulus, 1994, p. 19. A edição original francesa é de 1961, embora sua redação tenha ocorrido em 1924, quando Teilhard encontrava-se em expedição no deserto da Mongólia (Ordos).
[2] Ibidem, pp. 21 e 29.
[3] Henri de Lubac. La pensée religieuse du Père Teilhard de Chardin, pp. 119-121.
[4] Ibidem, p. 38.
[5] Pierre Teilhard de Chardin. Lettres de voyage (1923-1955). Paris: Bernard Grasset, 1956, p. 26.
[6] Henrique Cláudio de Lima Vaz. Universo científico e visão cristã em Teilhard de Chardin, p. 25.
[7] Pierre Teilhard de Chardin. Cartas a Léontine Zanta, p. 91. Ao tratar o tema da potência espiritual da matéria, em sua obra, Hino do Universo, Teilhard assinala: “Não, a pureza não está na separação, mas numa penetração mais profunda do Universo” (p. 68).
[8] Teilhard de Chardin. Il cuore della materia, pp.43-44.
