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Temor, reverência, admiração, adoração, ação

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Geraldo De Mori SJ

“… envolveu-o em faixas e deitou-o numa manjedoura, porque não havia lugar para eles na hospedaria” (Lc 27)

 

Os textos das Escrituras cristãs escolhidos para a liturgia que precede e que acompanha o tempo de Natal são marcados por uma série de gestos e atitudes da parte dos personagens que os vivem ou testemunham. A beleza desses gestos e atitudes não cessa de suscitar a imaginação artística, mas também a experiência espiritual, como atestam, desde a antiguidade, Orígenes, Agostinho e outros autores que afirmam que não adianta Jesus ter nascido uma vez em Belém, se ele não nascer de novo no coração de quem o contempla por ocasião das festas natalinas.

A cena mais tocante desse tempo, sem dúvida, é a que se mostra no presépio. Durante séculos, embora o ciclo do Natal já fosse consolidado na liturgia cristã, o mistério do nascimento, dado à contemplação nos presépios, não havia ainda ganhado o relevo que lhe deu, em 1223, Francisco de Assis, ao criar na ocasião uma espécie de presépio vivo, que deu origem ao que de muitas maneiras se tornou depois tradição. O Papa Francisco, na Carta Apostólica Admirable signum, convida todos a de novo se deixarem capturar por esse “sinal admirável”.

Na cena evangélica proposta para a noite de Natal, o que chama a atenção, primeiro, é, certamente, a possível angústia de José em busca de um lugar para que Maria pudesse dar à luz, uma vez que o tempo havia se completado, e “não havia lugar para eles na hospedaria”. O tempo de Deus e o tempo da humanidade haviam se “completado”, ou seja, amadurecido, mas a humanidade ainda resistia, não queria acolher. Mas na vida daquele casal e entre os animais do estábulo em que o menino nasceu, foi encontrado um lugar, e o menino foi envolvido em faixas e acolhido entre bois e ovelhas, como a tradição do presépio gosta de ornamentá-lo.

A cena seguinte é a dos que guardam os animais nos campos, os pastores. A eles é dado o privilégio da “revelação” do anjo do Senhor. O primeiro sentimento, embora eles estivessem habituados com os perigos da noite, é o do “temor”, que, segundo os estudiosos da religião, é o grande sentimento que é provocado pela manifestação do religioso, do sagrado ou do santo.  E o anjo os assegura: “Não temais”, anunciando-lhes a “grande alegria”, que é não só para eles, mas para todo o povo: “nasceu, hoje, na cidade de Davi, o Salvador, que é o Cristo Senhor” (Lc 2,11). E o sinal disso é um recém-nascido envolvo em faixas, deitado numa manjedoura (Lc 2,12). A esse anúncio, junta-se ao anjo uma multidão do “exército celeste”, que canta “Glória a Deus nas alturas e na terra, paz a todos por ele amados!” (Lc 2,14). Trata-se de uma notícia extraordinária, o nascimento do grande esperado do povo eleito, o Messias, mas também de um “escândalo”, o presente no despojamento total no qual ele nasceu, mas que, como diz Paulo aos Coríntios, a “loucura e o escândalo” para pagãos e judeus, é sabedoria de Deus (1Cor 1,18). Os pastores, após a mensagem do anjo vão a Belém para ver o que tinha acontecido. Lá encontraram Maria e José e o recém-nascido deitado na manjedoura, e lhes contaram o que tinham escutado a respeito do menino e todos ficaram “admirados”. O texto conclui evocando a atitude de Maria, que “medita tudo o que aconteceu” (Lc 2,19), e a ação dos pastores, que voltam ao seu lugar de trabalho, “louvando e glorificando a Deus por tudo o que tinham ouvido e visto” (Lc 2,20).

A busca de um lugar, o dar à luz e “deitar o menino na manjedoura”, o temor, o anúncio de uma boa notícia, o canto de glorificação, o deslocamento dos pastores a Belém, a admiração de Maria e José, o meditar no coração de Maria, o louvor e a glorificação são os gestos e as atitudes que emanam da narrativa no Natal. São também esses gestos e atitudes que a contemplação do presépio, que é o “Evangelho vivo”, como diz o Papa no texto comemorativo dos 800 anos de sua criação, devem suscitar a cada ano em quem se coloca diante dele, deixando-se interpelar por sua mensagem. Inácio de Loyola, na contemplação que propõe dessa cena nos Exercícios Espirituais, convida primeiro a ver as pessoas da cena: Maria, José, a criada e o Menino Jesus. Quem faz a contemplação deve se colocar nela, um “escravozinho indigno”, ficando na presença, como se ali estivesse presente, olhando, contemplando servindo a sagrada família em suas necessidades, com “todo acatamento e reverência”, refletindo em seguida, para “tirar proveito” (EE 114). Em seguida, olhar, advertir e contemplar o “que dizem”, também refletindo para tirar proveito (EE 115). Finalmente, olhar e considerar o que os personagens da cena contemplada fazem. Ou seja, o caminho até o presépio é feito de contemplação (visão), escuta, que se faz interpelação, e culmina na ação.

Todos esses gestos e atitudes, que recolhem em grande parte o conteúdo do mistério do Natal, embora passem distante do que se tornou o Natal na cultura consumista na qual viva grande parte da humanidade, continuam interpelando as pessoas cujas vidas neles se inspiram e se orientam. Muitas vezes, porém, o fato de ser uma festa que se repete a cada ano, parece tirar a novidade que sempre de novo é dada a ser contemplada e assimilada. Na verdade, a liturgia cristã, apesar de a cada ano reapresentar os fiéis ao mistério do Natal, nunca é a mesma liturgia, ou seja, a vida dos fiéis se encontra enraizada na história, e a história passa pelas provações do tempo. Por isso, apesar de cada pessoa ser a mesma, com o que viveu no decorrer do ano que passou, já é diferente, traz questões e vivências distintas, que precisam de outro tipo de resposta. Contemplar o mesmo mistério a cada ano não significa dar as mesmas respostas ao que se viveu naquele ano, mas descobrir no mistério contemplado qual luz ele traz para aquele momento específico da vida.

A pergunta que talvez devesse ser feita ao aproximar-se neste ano do “Evangelho vivo” manifestado no presépio é: sou capaz de ainda sair em busca de um lugar para que o recém-nascido possa nascer? O anúncio desse acontecimento ainda provoca em mim temor? Sou capaz de ouvir o canto de glorificação que sai da boca dos anjos? Sou capaz de sair de minha zona de conforto para “ver o que se passou em Belém?” Consigo ter o sentimento de admiração e sou capaz de “meditar no coração”? Contemplar a cena do presépio me torna uma pessoa melhor, ao saber que Deus assume nossa fragilidade, aquilo que nos coloca na vida, que é nascer? Sinto-me convocado a “nascer do alto” ao contemplar de novo os personagens e as cenas presentes no presépio? Até que ponto Natal, que é “nascimento”, me faz renascer e me coloca com novo ânimo e disposição para viver a vida acreditando nela, como o fez o próprio Deus que quis nascer como humano?

Geraldo de Mori, SJ é professor e pesquisador no departamento de Teologia da FAJE

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