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Tempo de decidir, momento decisivo e complexo. Orar a própria situação de eleição (segundo passo)

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Alfredo Sampaio Costa SJ

Nestes tempos sombrios, somos assolados por medos de todo tipo. Se não bastasse o pavor de sermos contaminados ou de contaminar nossos entes queridos, experimentamos também o medo de olhar para dentro de nós mesmos, pois somos conscientes que nem sempre temos vivido essa situação de modo conforme ao Evangelho. Mas é preciso rezar (e muito!) durante o tempo da pandemia. Vamos dar mais um passo esta semana, lembrando, no entanto, que cada passo implica o anterior, que continua sendo válido.

 SEGUNDO PASSO – Atentos aos desejos profundos que nos movem

 Para sermos pessoas de discernimento precisamos ter a paixão de fazer em tudo a vontade de Deus, como Jesus. Paixão pelo Reino, pela verdade, pela justiça, pela paz. Ter um grande desejo de conhecer sempre mais e melhor o que Deus quer de nós, aqui e agora (1). Ao rezar sobre o que fazer nesse tempo de indecisões e inseguranças, Inácio nos orienta a considerarmos que força ocupa em nossa vida essa Paixão pelo Reino!

Diante de cada possibilidade que se apresenta a nós, importa muito considerar os motivos interiores que nos movem a tomar esta ou aquela decisão. Normalmente somos movidos por uma mistura de motivos, alguns deles talvez nos atraiam mais. A presença de motivos mistos não nos impede de sermos conscientemente movidos pelo Amor de Deus, mas é preciso dirigir nossos pensamentos e sentimentos para Deus com todo o nosso coração, alma e mente, com toda a nossa força (2). O Amor de Deus é que deve ser o motivo principal que nos move.

Rezar nossos desejos profundos, que movem nossa decisão: “O Reino de Deus é semelhante a um tesouro escondido em um campo que um homem encontra” (Mt 13,44). Esse tesouro está em nós. Decidir a própria vida é buscar e encontrar esse tesouro oculto, nosso desejo profundo. Essa busca de nosso tesouro exige paciência e escuta, isto é, atenção e disponibilidade aos sinais que Deus nos faz, em nós mesmos e ao nosso redor. A filósofa judia Simone Weil pressentia isto quando escrevia em seu livro Attente de Dieu (3): “Os bens mais preciosos não devem ser buscados, mas sim esperados, porque o homem não pode encontrá-los por seus próprios meios”.

Desejos e discernimento: Os desejos têm uma grande importância no discernimento espiritual. O jesuíta Anthony de Mello ilumina essa verdade em uma história que ele nos conta de como devemos proceder para descobrir o chamado de Deus:

O discípulo era um judeu. Ele perguntou: “Qual boa obra eu devo realizar que seja aceitável a Deus?”.  “Como eu poderia saber?”, disse o Mestre. “A sua Bíblia diz que Abraão praticou a hospitalidade e Deus estava com ele. Elias amava rezar e Deus estava com ele. Davi governou um reino e Deus estava com ele também. “Há algum modo para que eu possa encontrar o trabalho que me cabe fazer?”. “Sim. Procure pela mais profunda inclinação do seu coração e a siga” (4).

Contrariamente ao modo negativo que os desejos são vistos na tradição cristã posterior, Jesus dirigia as pessoas a irem ao encontro dos seus desejos quando elas estavam em busca de direção para suas vidas. O evangelho de João (1,30-36) descreve a experiência dos dois discípulos de João Batista que se põem a seguir a Jesus e este se volta e lhes pergunta: “O que vocês querem?”. “Rabi, onde moras?”. “Vinde e vede”. Santo Inácio nos seus Exercícios também segue essa visão positiva dos desejos na vida espiritual. Ele instrui os exercitantes a iniciarem cada período de oração comunicando os seus desejos que enchem o seu coração (EE 48). “Pedir o que quero e desejo” é essencial à oração inaciana. Inácio articula uma espiritualidade do desejo (5).

Selecionando nossos desejos na oração: Quando olhamos para nossos corações, deparamo-nos com uma mescla de desejos, sonhos, esperanças, necessidades, temores e desejos. Alguns dos nossos desejos são compatíveis com outros; alguns são mutuamente excludentes. Somos conscientes também que os desejos podem afetar nossa vida seja positiva seja negativamente. Alguns desejos podem nos escravizar e dissipar nossas energias; outros têm a capacidade de gerar poder e energizar nossas vidas. Eis porque é muito importante rezar sobre os nossos desejos: A oração é o lugar onde nós selecionamos os desejos que nós escolhemos seguir (6). O processo envolve identificá-los, avaliá-los e selecioná-los.

Discernir o desejo é separar o que há nele de ambição e o que há de comunhão: do desejar coisas ao viver a comunhão de desejos entre pessoas. Separar as duas forças do desejo humano: discernir o “Desejo” nos desejos dispersos, descobrir que somos “desejáveis” para os demais e que somo ricos para bendizer. O progresso no amor e no desejo é um despojamento de tudo e de todos. Temos que tender a uma libertação do coração, que vai se abrindo ao amor e à graça de um novo encontro. Trata-se de despertar uma atenção aguda às atrações do coração, à emergência do Desejo (7).

Seguir a Jesus no “mais” do desejoA pessoa que se põe em contato com os relatos do evangelho é chamada a se identificar com as figuras evangélicas em sua forma de experimentar a proximidade de Jesus, no seu convite a viver uma vida diferente da que vivia até então, nas vicissitudes que esse caminho de seguimento comporta; é chamada, em suma, a converter estas experiências concretas em experiências-chave para sua própria vida. Desde modo, viver o seguimento de Jesus se converte em uma categoria evangélica da vocação cristã e reflexa, com as estruturas dinâmicas próprias desta figura, o processo de aventura de reabilitação radical do desejo, que se converte em processo de amadurecimento e confirmação da eleição de vida (8).

Jesus, o mediador do Desejo de Deus, pelo fascínio e atração que suscita, seduz e adestra o desejo a ir mais longe, mais além dos desejos cultivados pelo mundo, mais além inclusive do que o próprio sujeito desejante se suponha capaz de alcançar, nem sequer de poder imaginar: o “mais” do desejo. A missão de Jesus é iniciar-nos no desejo vindo de Deus, porque não conhecemos o dom de Deus, e a este nem a carne nem o sangue podem revelar, mas só Deus mesmo, no rosto e no amor de seu Amado. Jesus é o Mestre do desejo e seu Desejo é o original, onde se podem mirar todos os desejos realmente humanos.

Pe. Alfredo Sampaio Costa SJ é professor e pesquisador no departamento de Teologia da FAJE

(1) Luís González-Quevedo, Discernimento Espiritual – As Regras Inacianas, São Paulo: Loyola 2013,12.

(2) Cf. Tad Dunne, Spiritual Exercises for Today, 154.

(3) Simone Weil, Attente de Dieu, Paris: La Colombe 1950, 120.

(4) Anthony de Mello, One Minute Wisdom, New York: Doubleday and Company 1975, 15.

(5) Wilkie Au and Noreen C. Au, The Discerning Heart. Exploring the Christian Path, New York/ Mahwah, N.J. : Paulist Press 2006, 133.

(6) Wilkie Au and Noreen C. Au, The Discerning Heart, 138.

(7) Xavier Quinzá Lleó, Ordenar el caos interior. Una propuesta espiritual. Santander- Bilbao: Mensajero – Sal Terrae 2011, 94.

(8) Xavier Quinzá Lleó, Ordenar el caos interior, 104-105.

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